17.07.2017 Views

edição de 17 de julho de 2017

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Fotos: Clovis Aidar/Divulgação<br />

Renata Florio é Global Group<br />

Creative Director da Ogilvy<br />

& Mather, com base no<br />

escritório <strong>de</strong> Nova York<br />

Renata FloRio<br />

– especial para o PRoPMaRK<br />

Ela nem se dava conta que estava falando tão alto, ora subia<br />

o tom da voz, que alcançava um agudo quase insuportável,<br />

ora gargalhava a ponto <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r o fôlego e provocar uma tosse<br />

<strong>de</strong> cachorro.<br />

O cachorro que acabava <strong>de</strong> passar tão pouco se importava<br />

com a tosse da mulher ou com a mulher; seguia com sua postura<br />

altiva, autoconfiança <strong>de</strong> raça pura, malandragem <strong>de</strong> vira-lata,<br />

jogando charme para a ca<strong>de</strong>linha que vinha no sentido contrário.<br />

O charme funcionou e os dois bichos ficaram se cheirando,<br />

causando constrangimento aos respectivos donos. A <strong>de</strong>la, uma<br />

moça que não tinha mais que 25 anos, o <strong>de</strong>le, um rapaz <strong>de</strong> uns<br />

30, magricela e com cara <strong>de</strong> assustado.<br />

Depois <strong>de</strong> algumas voltas <strong>de</strong> coleira e várias outras cheiradinhas,<br />

os quatro se <strong>de</strong>spediram e, ao mesmo tempo, notaram as<br />

duas moças que se aproximavam.<br />

Seriam mo<strong>de</strong>los? A da direita com certeza, pensou a jovem<br />

dona da poodle, que agora se coçava intermitemente enquanto<br />

sua dona notava a saia longa, a blusa elegantemente <strong>de</strong>cotada,<br />

o cabelo preso em um nó no topo da cabeça e abrigava um belíssimo<br />

par <strong>de</strong> óculos escuros, tudo combinava tão bem naquela<br />

mulher. Mo<strong>de</strong>lo, com certeza.<br />

A moça da esquerda também po<strong>de</strong>ria ser uma mo<strong>de</strong>lo, mas<br />

não tinha a mesma classe. Usava um vestido branco, também<br />

longo, quase bonito. O rapaz, dono do cachorro pura-raça-vira-<br />

-lata pensava diferente. Achou a mulher da esquerda muito mais<br />

interessante que a mulher da direita. Quando ambas se <strong>de</strong>ram<br />

as mãos e se beijaram nos lábios ele seguiu seu caminho, assim<br />

como elas, assim como a moça do poodle, assim como a mulher<br />

ao telefone… bem, a mulher ao telefone não seguiu necessariamente<br />

o seu caminho, mas seguiu com a sua conversa.<br />

Continuava a falar, a dar risada e a tossir, sem se importar<br />

com o que passava ao redor. Nem o calor, o sol escaldante <strong>de</strong> 38<br />

graus, fazia com que ela parasse <strong>de</strong> falar. Num <strong>de</strong>terminado momento,<br />

falou tão rápido que parecia que ia engasgar, mas tomou<br />

um gole <strong>de</strong> água <strong>de</strong> uma garrafinha <strong>de</strong> plástico meio amassada<br />

e continuou.<br />

A garrafinha, apoiada na ponta do banco, tombou e rolou pelo<br />

chão, mas ela, mais uma vez, não se <strong>de</strong>u conta do que passava<br />

à sua volta. Lá se foi a garrafa, rolando até um casal <strong>de</strong> meia<br />

ida<strong>de</strong> que passeava com uma mulher <strong>de</strong> uns 30 e poucos anos,<br />

turistas na certa. O homem parou o percurso da garrafa com o<br />

pé, a mulher e a outra moça, filha do casal talvez (?), seguiram a<br />

caminhada, <strong>de</strong>ixando o elegante senhor para trás.<br />

Talvez por ser muito educado, talvez por se sentir na obrigação<br />

<strong>de</strong> ser civilizado enquanto visitava uma cida<strong>de</strong> tão mo<strong>de</strong>rna,<br />

o homem resolveu pegar a garrafa do chão. Examinou a embalagem<br />

como quem procura uma etiqueta com as informações<br />

do dono, essas que colocamos nas malas <strong>de</strong> viagem para o caso<br />

<strong>de</strong> se extraviarem, sempre esperando que nunca se percam,<br />

porque se elas se per<strong>de</strong>rem poucas são as chances <strong>de</strong> conseguirmos<br />

resgatá-las; a não ser que isso ocorra na Suécia: lá, se a sua<br />

mala se per<strong>de</strong>r, ela aparece na sua casa (ou hotel) no dia seguinte,<br />

intacta e entregue por um rapaz muito bonito e educado, que<br />

toca a campainha às 9 horas da manhã, exatamente no horário<br />

que a companhia aérea avisou que iria entregar.<br />

Mas no caso da garrafa não havia nenhuma informação com<br />

dados para retorno com caso <strong>de</strong> extravio, portanto o cavalheiro<br />

olhou em volta para encontrar a lata <strong>de</strong> lixo mais próxima.<br />

O som do navio passando ao fundo fez com que ele se virasse<br />

para o rio, para observar o gigante que dava ré(!). Ele se perguntou<br />

se era possível um navio <strong>de</strong> turismo conseguir dar ré, mas<br />

aí se lembrou que o navio é manobrado por uma outra barca,<br />

e quem o conduz nessas horas é um profissional chamado <strong>de</strong><br />

“prático”, aliás há que se ter muita prática para mover um edifício<br />

flutuante cheio <strong>de</strong> pessoas que planejaram e sonharam com<br />

essa viagem por dias a fio. Assim como ele sonhou e imaginou<br />

viajar com sua mulher e sua filha (que seguiram a caminhada<br />

sem notar que ele parara); conhecer a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nova York e visitar<br />

os museus; caminhar pelas ruas e parques e observar os<br />

barcos e este navio passando no Rio Hudson, tudo tão limpo,<br />

nem um lixo no parque, só a garrafa <strong>de</strong> plástico, que ele jogou na<br />

lata <strong>de</strong> lixo, ao lado <strong>de</strong> uma mulher que falava sozinha sentada<br />

num banco, falava alto, gargalhava tanto que engasgava e tossia<br />

uma tosse <strong>de</strong> cachorro. Falava sozinha, é verda<strong>de</strong>, mas quem se<br />

importa, ele pensou, qual o problema <strong>de</strong> sentar num banco <strong>de</strong><br />

parque e falar sozinha por horas a fio? This is New York!<br />

Destino da garrafa<br />

Uma selva <strong>de</strong> pedra, como na foto principal à<br />

esquerda, é humanizada por boas conversas e<br />

experiências <strong>de</strong> gente que visitam Nova York.<br />

Cadê a pequena garrafa que estava aqui? Não<br />

vai encontrar. Já foi pro lixo. Atitu<strong>de</strong> sensorial<br />

assimilada sem pressão, natural.<br />

jornal propmark - <strong>17</strong> <strong>de</strong> <strong>julho</strong> <strong>de</strong> 20<strong>17</strong> 23

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!