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última página<br />
Sobre propósito<br />
e escolhas<br />
bowie15/iStock<br />
Claudia Penteado<br />
Outro dia, num fim <strong>de</strong> semana em que<br />
por acaso me encontrava em Salvador,<br />
na Bahia, ouvi comentaristas <strong>de</strong> uma rádio<br />
criticarem uma cantora muito popular<br />
por lá que teria “enganado” as pessoas ao<br />
anunciar que abandonaria o seu sobrenome,<br />
para <strong>de</strong>pois revelar que se tratava <strong>de</strong><br />
uma brinca<strong>de</strong>ira vinculada à estratégia <strong>de</strong><br />
marketing <strong>de</strong> um laboratório. Sem qualquer<br />
juízo <strong>de</strong> valor à estratégia, revelo aqui<br />
o que era: Claudia Leitte disse aos fãs que<br />
mudaria seu nome artístico, e <strong>de</strong>pois revelou<br />
que não precisaria “tirar o leite”, ação<br />
publicitária do medicamento Perlatte, da<br />
Eurofarma, <strong>de</strong>stinado a pessoas com intolerância<br />
a lactose. Na hora, me lembro <strong>de</strong><br />
pensar: nossa, mas que gente chata, que<br />
mania <strong>de</strong> reclamar <strong>de</strong> tudo. Mas tenho um<br />
vício – talvez comum a jornalistas, não sei<br />
– <strong>de</strong> tentar enxergar fatos por<br />
diferentes ângulos – algo útil e<br />
interessante, posso garantir, para<br />
quem gostaria <strong>de</strong> tentar.<br />
Lembrei-me do enterro do<br />
Bentley; Neymar anunciando<br />
que ia virar cantor, em ação <strong>de</strong><br />
Snickers; e outras tantas estratégias<br />
que simulam realida<strong>de</strong>s.<br />
E até <strong>de</strong> uma peça <strong>de</strong> teatro que<br />
assisti outro dia em que a atriz<br />
fingiu que esqueceu o texto logo no começo<br />
e me fez passar o resto do tempo num estranho<br />
e <strong>de</strong>sconcertante limiar entre o que parecia<br />
interpretação <strong>de</strong> fato e o que po<strong>de</strong>ria<br />
ser improviso no esquecimento. Simplesmente<br />
não dava mais para acreditar nela.<br />
Minha dúvida era a seguinte, tentando<br />
usar um pouco da perspectiva <strong>de</strong> quem<br />
reclamou por ter sido “enganado”: na era<br />
da trolagem e das notícias falsas, a publicida<strong>de</strong><br />
que se vale <strong>de</strong> pegadinhas assim<br />
estaria simplesmente captando o “espírito<br />
do tempo” <strong>de</strong> forma bem-humorada ou há<br />
algum limite ético nessa história?<br />
“EntEndEr<br />
o quE<br />
rEalmEntE<br />
importa para<br />
as pEssoas<br />
dá mais<br />
trabalho”<br />
Assuntei por aí, especialmente com gente<br />
que, ao contrário da mim, transita pelos<br />
intestinos <strong>de</strong>sse business cada vez mais<br />
complexo chamado propaganda. Fábio Seidl,<br />
experiente criativo no meio digital, disse<br />
que os resmungões acabam colaborando<br />
para o sucesso <strong>de</strong> campanhas assim, gerando<br />
discussões e chamando a atenção para<br />
as marcas. Resmungos estariam sempre<br />
previstos no pacote. A muitos parece natural<br />
a convergência entre espetáculo e propaganda<br />
envolvendo celebrida<strong>de</strong>s, cujo dia<br />
a dia, como bem me lembrou o Abel Reis, é<br />
mesmo “quase <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>”.<br />
O criativo Fernando Campos (autor da<br />
ação da Claudia Leitte) acha que o esporte<br />
preferido do mundo atual é a problematização.<br />
Enquanto isso, seu cliente está feliz<br />
com os resultados da campanha. Verda<strong>de</strong>,<br />
muitas vezes procuramos pelo em ovo. Mas<br />
por outro lado, se nunca refletirmos sobre o<br />
que fazemos, o que nos tornamos?<br />
Preciso confessar que, <strong>de</strong> conversa em<br />
conversa, cheguei ao bom e velho<br />
“caminho do meio”. Para<br />
muitas pessoas, quando uma<br />
marca lhe conta uma história e<br />
<strong>de</strong>pois fala que era tudo mentirinha,<br />
em nome <strong>de</strong> uma vantagem<br />
comercial, isso se torna<br />
frustrante. Se a mentirinha, por<br />
outro lado, for contada por um<br />
motivo um pouco mais nobre ou<br />
interessante – como foi o caso do<br />
Chiquinho Scarpa e seu Enterro<br />
do Bentley –, talvez a frustração nem exista<br />
e o efeito seja outro, o <strong>de</strong> uma grata surpresa.<br />
“É mais fácil ficar reclamando <strong>de</strong> que<br />
está tudo uma chatice do que parar, refletir,<br />
enten<strong>de</strong>r o que realmente importa para as<br />
pessoas. Fazer isso dá mais trabalho”, me<br />
chamou a atenção outro criativo, o Carlão<br />
Fonseca.<br />
Correndo o risco <strong>de</strong> engrossar o coro<br />
dos chatos ou <strong>de</strong> soar como existencialista<br />
obcecada por sentido, tendo a simpatizar<br />
bem mais com a busca <strong>de</strong> um propósito nas<br />
ações das marcas, <strong>de</strong>ixando o humor puro<br />
e simples para os humoristas. Porque marcas<br />
ven<strong>de</strong>m produtos e serviços no mundo,<br />
não estão aqui a passeio. A busca pelo equilíbrio<br />
na mensagem, essa medida tênue, é,<br />
afinal <strong>de</strong> contas, o que separa o joio do trigo,<br />
o simplório do memorável.<br />
50 <strong>17</strong> <strong>de</strong> <strong>julho</strong> <strong>de</strong> 20<strong>17</strong> - jornal propmark