24.01.2019 Views

edição de 28 de janeiro de 2019

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

STORYTELLER<br />

microgen/iStock<br />

Rio dos infernos<br />

Tudo à mão é leque: jornais, bolsas, seja<br />

o que for maior que a mão, para produzir<br />

um ventinho quente, que não refresca<br />

LULA VIEIRA<br />

relógio da rua marca 45 graus. O motorista<br />

me olha através do retrovisor e<br />

O<br />

sentencia: doutor, putaqueopariu! Não precisa<br />

explicar o porquê. O mundo à minha<br />

volta ofega, abana-se, sua e reclama. Tudo<br />

está lento, cansado. Tudo à mão é leque:<br />

jornais, bolsas, seja o que for maior que a<br />

mão, para produzir um ventinho quente,<br />

que não refresca, mas serve para respirar.<br />

Dentro dos ônibus, gente com olhar <strong>de</strong> gado<br />

a caminho <strong>de</strong> não se sabe do que, já que<br />

o matadouro é o próprio caminho. O motorista<br />

tem uma toalha enrolada ao pescoço,<br />

úmida, pegajosa. É o que lhe serve para enxugar<br />

o rosto, limpar as lágrimas e tudo o<br />

mais que lhe escorre pela cara. O uniforme,<br />

uma massaroca <strong>de</strong> pano molhado, mãos escorregando<br />

pelo volante. Não se vive num<br />

lugar assim. Mesmo no <strong>de</strong>serto os tuaregues<br />

não apeiam <strong>de</strong> seus camelos (perto da<br />

areia o calor é maior, que diga o saco do camelo)<br />

nem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> usar suas vestes brancas<br />

e folgadas, antídoto ao sol.<br />

Aqui no Rio tem gente <strong>de</strong> camiseta preta,<br />

mulheres <strong>de</strong> terninho e até mesmo alguns<br />

advogados <strong>de</strong> paletó e gravata. Isso<br />

na rua, claro, pois nos escritórios ou em<br />

lugares fechados, o ar-condicionado está<br />

permanentemente ligado no máximo. Para<br />

que as pessoas possam pensar. Eu tive <strong>de</strong><br />

fazer uma foto e fui para a Lapa, on<strong>de</strong> fica o<br />

estúdio do fotógrafo. Uma rua que começa<br />

na Sala Cecília Meirelles e termina na Escadaria<br />

Selarón, um dos pontos turísticos do<br />

Rio. Um beco feio, maltratado e quente. A<br />

boca do inferno, ainda que a escadaria valha<br />

a pena. Turista é bicho louco e gosta do<br />

calorão. Até morrer <strong>de</strong> insolação ou <strong>de</strong>scascar<br />

como ovo cozido. Vai daí que ao chegar<br />

no prédio do fotógrafo <strong>de</strong>scubro que não há<br />

energia. Nem no prédio nem no bairro todo.<br />

As pessoas me aconselham a não subir,<br />

o edifício tem imensas janelas <strong>de</strong> vidro que<br />

botam o sol para <strong>de</strong>ntro. Há relatos que teimosos<br />

<strong>de</strong>smaiaram. As fake circulam. Um<br />

porteiro climatólogo garante que nas salas<br />

o calor é <strong>de</strong> 60 graus, ou mais. Fico na rua,<br />

junto com os turistas e habitantes do local,<br />

lojistas e profissionais do sexo, expulsos<br />

pelo calor inacreditável. Logo abaixo do<br />

prédio há um bar, lotado, mas sem nenhuma<br />

venda, pois nada funciona. As pessoas<br />

usam as ca<strong>de</strong>iras para <strong>de</strong>scansar. É o que<br />

faço, privilégio da ida<strong>de</strong>. Consigo uma água<br />

num copo <strong>de</strong> vidro, quente, mas água. E<br />

fico ali, suando e bebericando a aguinha.<br />

Alguém que conheço passa num carro pela<br />

rua estreita e me dá um a<strong>de</strong>usinho, <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> seu casulo <strong>de</strong> ar-condicionado.<br />

Respondo-lhe. Ele se vai. De repente me<br />

ocorre um pensamento: já pensou esse cara<br />

contando que me viu, às <strong>de</strong>z da manhã,<br />

bebendo num boteco na Lapa, cercado <strong>de</strong><br />

putas?<br />

Foto perdida, já que a Light garantiu que<br />

até o meio-dia a energia voltava e a opinião<br />

unânime era que a Light não tem a menor<br />

credibilida<strong>de</strong> e “até o meio-dia” po<strong>de</strong>ria<br />

significar já, amanhã ou <strong>de</strong>pois, resolvo<br />

ir para casa, para o meu ar-condicionado.<br />

Sentado na sala, com um copo <strong>de</strong> suco com<br />

gelo, noto que <strong>de</strong>ixei a porta do quintal<br />

aberta e meu cachorro, um imenso Labrador<br />

jovem, entrou. Ele não po<strong>de</strong> entrar em<br />

casa. Não só porque é <strong>de</strong> sua proprieda<strong>de</strong><br />

um enorme quintal, como ele pessoalmente<br />

é um <strong>de</strong>sastre ecológico. On<strong>de</strong> ele passa<br />

não fica pedra sobre pedra, bibelô sobre bibelô,<br />

porta-retratos, troféus e obras <strong>de</strong> arte.<br />

Ele <strong>de</strong>strói tudo à rabadas.<br />

Logo, profilaticamente dividimos os espaços<br />

. Mas o Moka (esse é o nome <strong>de</strong>le) entrou.<br />

Normalmente ele quando me vê pula<br />

em cima <strong>de</strong> mim. E lambe, gane, se esfrega,<br />

abanando o rabo <strong>de</strong> pura felicida<strong>de</strong>. Ele me<br />

ama. E eu a ele. Mas não <strong>de</strong>ve entrar em<br />

casa. Pois bem, estou lá pensando na vida<br />

quando o Moka entra, quietinho, mal abananado<br />

o rabo, olha para mim, olha para o<br />

tapete e <strong>de</strong>vagar, <strong>de</strong>vagarzinho, vai <strong>de</strong>itar<br />

e fecha os olhos. Pensei no calor lá fora.<br />

Fingi que não percebi. E ficamos os dois<br />

aproveitando a temperatura civilizada e<br />

rezando pela alma do Carrier, seu inventor.<br />

O céu (on<strong>de</strong> ele <strong>de</strong>ve habitar) <strong>de</strong>ve ser um<br />

lugar fresquinho. Com um labrador amigo<br />

fingindo dormir.<br />

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />

e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />

editor e professor<br />

lulavieira@grupomesa.com.br<br />

jornal propmark - <strong>28</strong> <strong>de</strong> <strong>janeiro</strong> <strong>de</strong> <strong>2019</strong> 37

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!