João LuÃs Nabo - Index of - Universidade de Évora
João LuÃs Nabo - Index of - Universidade de Évora
João LuÃs Nabo - Index of - Universidade de Évora
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
forma como dasafiavam o seu outro lado mais pacífico. Esta i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> ética e moralmente correcta<br />
representava um status quo sujeito, por exemplo, às transgressões <strong>de</strong> Jekyll/Hy<strong>de</strong>, da Criatura <strong>de</strong><br />
Frankenstein e <strong>de</strong> Jack, The Ripper 122 , personagens-base que iriam <strong>de</strong>finir as góticas criadas<br />
posteriormente. Esta procura em ultrapassar as fronteiras, perturbar a or<strong>de</strong>m e <strong>de</strong>sfocar a linha que<br />
divi<strong>de</strong> o Bem e o Mal, tornou-se no pretexto do escritor para uma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> reflexão sobre si próprio,<br />
sobre os seus limites e as consequências dos seus actos transgressores e, sobretudo, sobre o processo<br />
criativo em geral, e o seu em particular.<br />
A citação com que se inicia o presente capítulo, retirada <strong>de</strong> um conto <strong>de</strong> Edgar Allan Poe, em<br />
que este satiriza as histórias <strong>de</strong> terror publicadas na Blackwood Edinburgh Magazine, tem o objectivo<br />
<strong>de</strong> enquadrar a opinião <strong>de</strong> Carlos Ceia sobre a auto-reflexivida<strong>de</strong>. Em A Construção do Romance, Ceia<br />
diz que, embora encontre já na obra-prima <strong>de</strong> Cervantes marcas <strong>de</strong> auto-reflexivida<strong>de</strong> na sua técnica<br />
narrativa, a manifestação <strong>de</strong>ssa capacida<strong>de</strong> é, sobretudo, da natureza do romance mo<strong>de</strong>rnista 123 , que<br />
surge como reacção ao romance realista clássico do século XIX. Essa qualida<strong>de</strong> vem contrariar as<br />
teorias que prevaleceram até então e que apontavam a quase obrigatorieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> o autor <strong>de</strong>saparecer<br />
por <strong>de</strong>trás dos seus textos. Como refere Brian Stonehill, “art concealing art – this has in<strong>de</strong>ed marked<br />
the character <strong>of</strong> much <strong>of</strong> the best literature, and fiction in particular, for centuries.” 124 No seu livro The<br />
Self-conscious Novel, Artifice in Fiction from Joyce to Pynchon (1988), este crítico cita Aristóteles<br />
que, na Poética (1968), sublinha que “o poeta <strong>de</strong>veria falar o menos possível por conta própria, pois<br />
assim proce<strong>de</strong>ndo, não é imitador.” 125 O crítico cita também Ford Madox Ford, que escreveu: “[The<br />
novelist’s goal] is to keep the rea<strong>de</strong>r entirely oblivious <strong>of</strong> the fact that the author exists – even <strong>of</strong> the<br />
fact that he is holding a book.” 126 Após estes e outros exemplos <strong>de</strong> <strong>de</strong>fensores da completa ausência <strong>de</strong><br />
auto-referencialida<strong>de</strong> e auto-reflexivida<strong>de</strong> nos textos <strong>de</strong> ficção, Stonehill apresenta a sua intenção <strong>de</strong><br />
dar início ao estudo daquilo a que chama a self-conscious novel, e que <strong>de</strong>fine como “exten<strong>de</strong>d prose<br />
narrative that draws attention to its status as a fiction” 127 , afastando-se assim das premissas<br />
aristotélicas. Consequentemente, vemos aqui a admissão da figura do escritor como responsável<br />
assumido do texto, mantendo uma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> muita proximida<strong>de</strong> com este, no qual po<strong>de</strong>,<br />
inclusivamente, participar como personagem, sendo esta consi<strong>de</strong>rada como uma extensão (um alter-<br />
ego, um Duplo) <strong>de</strong> si próprio. Por exemplo, como refere David Lodge em Consciousness and The<br />
Novel (2002), em The Human Stain (2000) o escritor norte-americano Philip Roth utiliza Nathan<br />
Zuckerman como seu narrador favorito e, consequentemente, como seu alter-ego: “Zuckerman reports,<br />
122 Patricia Cornwell, na obra Portrait <strong>of</strong> a Killer, Jack, The Ripper, Case Closed (2002), tenta provar que o pintor e actor<br />
Walter Richard Sickers e Jack, o Estripador são a mesma pessoa.<br />
123 Carlos Ceia, A Construção do Romance, p. 75.<br />
124 Brian Stonehill, The Self-conscious Novel, p. 1.<br />
125 Aristóteles, Poética, Cap. XXIV, p. 147.<br />
126 Brian Stonehill, The Self-conscious Novel, p. 1.<br />
127 Ibi<strong>de</strong>m, p. 3.<br />
38