Práticas <strong>de</strong> cuidado <strong>em</strong> uma...INTRODUÇÃOOs fenômenos que suced<strong>em</strong> a hospitalização têmimpacto tanto nas pessoas que a experienciam como nasações <strong>em</strong> saú<strong>de</strong> executadas pelos profissionais. Entretanto,acreditamos que a internação na unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>em</strong>ergênciasuscita outras formas <strong>de</strong> ver e enten<strong>de</strong>r o hospitalcomo campo <strong>de</strong> saberes e práticas multidisciplinares eque <strong>de</strong>ve captar e trabalhar com as d<strong>em</strong>andas dos usuáriosque atend<strong>em</strong>, sejam eles pacientes ou familiares.Os setores <strong>de</strong> Pronto-Socorro faz<strong>em</strong> parte das re<strong>de</strong>spública e privada <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, responsáveis pelo atendimentoaos casos <strong>em</strong> que há risco <strong>de</strong> vida imediato ou mediato.Assim, é sabido que os serviços são extr<strong>em</strong>amente requisitadospela população, não sendo novida<strong>de</strong> no país aexistência <strong>de</strong> uma sobrecarga <strong>de</strong> atendimento, <strong>de</strong> escassez<strong>de</strong> recursos materiais, humanos e financeiros. Nessesentido, entend<strong>em</strong>os que as condições do paciente, doserviço <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> procurado, a disponibilida<strong>de</strong> dos profissionais<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, entre outros fatores, pod<strong>em</strong> interferirna recuperação <strong>de</strong>sse paciente durante sua internação,refletindo-se também na recuperação <strong>de</strong> sua família, atémesmo no que diz respeito a seu aspecto <strong>em</strong>ocional.O hospital constituía-se, na Ida<strong>de</strong> Média, <strong>em</strong> uma instituição<strong>de</strong> carida<strong>de</strong>, que prestava cuidado a pobres <strong>em</strong>oribundos, indivíduos esses marginalizados pela socieda<strong>de</strong>da época. O cuidado aos pacientes era prestadopor irmãs <strong>de</strong> carida<strong>de</strong>, com interesses religiosos. Contudo,com o advento do capitalismo e a captura dos processos<strong>de</strong> trabalho pelos hospitais, a instituição passou acuidar <strong>de</strong> doentes com fins curativos. (1)Durante a guerra da Criméia, Florence Nightingaleconseguiu sanear o hospital militar <strong>em</strong> que prestava cuidados,logrando uma redução das taxas <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong><strong>de</strong> soldados internados 40% para 2% utilizando umreferencial disciplinado <strong>de</strong> cuidado. Ela também acreditavaque o cuidado, além <strong>de</strong> ser disciplinado, <strong>de</strong>veria serdirecionado ao conforto do paciente no espaço hospitalar,on<strong>de</strong> as boas condições do ambiente passavam a serpriorida<strong>de</strong> e as necessida<strong>de</strong>s psicossociais eram garantidascomo forma <strong>de</strong> se promover a reabilitação integraldo doente. (2)Observamos que Florence já se preocupava com oconforto do paciente por meio da modificação do chamado"ambiente terapêutico". Seu pensamento, <strong>de</strong> caráterambientalista, permitiu discussões acerca das possibilida<strong>de</strong>se limitações do hospital na promoção <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> ereabilitação dos pacientes. Começou-se então, ahumanizar, mesmo que <strong>de</strong> maneira incipiente, um ambientetecnicista, <strong>em</strong> que a integralida<strong>de</strong> da atenção <strong>de</strong>veriaser oferecida tendo-se <strong>em</strong> vista a da promoção dasaú<strong>de</strong> física e mental <strong>de</strong> pacientes e familiares.As necessida<strong>de</strong>s ou os probl<strong>em</strong>as <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> pacientese familiares <strong>de</strong>pend<strong>em</strong> <strong>de</strong>les e do profissional que osaten<strong>de</strong>. Qualquer pessoa que procura um serviço <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>traz consigo um probl<strong>em</strong>a, um obstáculo que precisa<strong>de</strong> resolução. Assim sendo, cabe ao profissional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>amenizar o probl<strong>em</strong>a ou solucioná-lo com base <strong>em</strong> seusaber científico e tecnológico. As tecnologias assistenciaissurg<strong>em</strong> como alternativas teórico-metodológicas <strong>de</strong> atendimentoao usuário que procura o serviço. O processo <strong>de</strong>adoecimento <strong>de</strong>ve ser encarado do ponto <strong>de</strong> vista pluralista,<strong>em</strong> que fatores físicos, psicológicos e socioculturais predominame rumam para uma trajetória convergente <strong>de</strong>resolução dos probl<strong>em</strong>as <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. (3)Segundo esse mesmo autor, as tecnologias assistenciaispod<strong>em</strong> ser <strong>de</strong> 3 tipos: duras, nas quais predominam osequipamentos, os aparatos tecnológicos; leve-duras, <strong>em</strong>que há uma ênfase no saber científico e estruturado (comoas clínicas médicas) e as leves, <strong>em</strong> que o acolhimento, ovínculo e o relacionamento humano são <strong>de</strong>staques comosaberes interpessoais e como po<strong>de</strong>rosos instrumentos<strong>de</strong> humanização da assistência.Entend<strong>em</strong>os que qualquer gesto realizado pelo profissional<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, por mais breve que seja, constitui alternativapara aliviar um ser sofrido, uma postura curvadae um rosto triste. O vínculo, o acolhimento e o relacionamentoterapêutico são tecnologias que <strong>de</strong>v<strong>em</strong> fazerparte da rotina <strong>de</strong> atendimento <strong>de</strong> tais profissionais, poistornam-se formas <strong>de</strong> expressão <strong>em</strong> que se resgatam asconcepções <strong>de</strong> ser humano <strong>em</strong> sua integralida<strong>de</strong>biopsicossocial, contribuindo para um cuidado maishumanizado nos serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.A humanização <strong>em</strong> saú<strong>de</strong> v<strong>em</strong> sendo discutida <strong>em</strong> diversosestudos, tanto nacional (5-7) , como internacionalmente.(8-9) Todos eles apontam para a valorização do serhumano doente, enten<strong>de</strong>ndo-o <strong>em</strong> sua inteireza e nasmais diversas fases do seu ciclo vital. Cada ser humano éúnico <strong>em</strong> sua forma <strong>de</strong> pensar, agir e reagir, tendo, porisso, necessida<strong>de</strong>s próprias, exigências, carências, d<strong>em</strong>andaspsicossociais e relações sociais singulares, sendo osfamiliares o seu principal apoio ou possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> amparoe proteção.Este estudo preten<strong>de</strong> refletir acerca das práticas <strong>de</strong>cuidado nas unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>em</strong>ergência com um olhar paraas famílias <strong>de</strong> pacientes internados, apontando alguns autoresque discorr<strong>em</strong> sobre esta probl<strong>em</strong>ática. Acreditamosque, ao <strong>de</strong>screver algumas inquietações dos familiares,necessida<strong>de</strong>s, dúvidas, <strong>de</strong>sentendimentos, opiniões einconformida<strong>de</strong>s acerca das condições <strong>de</strong> atendimento<strong>em</strong> uma unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>em</strong>ergência, enfatizando seus encontrose <strong>de</strong>sencontros <strong>em</strong> relação ao que seria o melhornesta situação, estar<strong>em</strong>os provocando maiores <strong>de</strong>batese reflexões sobre as práticas <strong>de</strong> cuidado efetuadas pelosprofissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> nesse espaço social.O PROCESSO INVESTIGATIVO SEGUIDOFoi realizado <strong>de</strong> um estudo <strong>de</strong> grupo, <strong>de</strong> caráterexploratório, com familiares <strong>de</strong> três pacientes internadosna unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>em</strong>ergência <strong>de</strong> um pronto-socorro <strong>de</strong>um hospital universitário da região sul. Obteve-se a aprovaçãodo comitê <strong>de</strong> ética <strong>em</strong> pesquisa da instituição, b<strong>em</strong>como a <strong>de</strong>vida assinatura do consentimento livre esclarecidodos sujeitos envolvidos.O serviço <strong>de</strong> Pronto-Socorro, local <strong>de</strong> estudo, possui720 m 2 e situa-se <strong>em</strong> local <strong>de</strong> fácil acesso a transportecoletivo pela população. Aten<strong>de</strong> pelo Sist<strong>em</strong>a Único <strong>de</strong>Saú<strong>de</strong> (SUS) nas 24 horas do dia, inclusive feriados e finais<strong>de</strong> s<strong>em</strong>ana.A unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>em</strong>ergência pesquisada t<strong>em</strong> uma áreaútil <strong>de</strong> 60,85 m 2 , sendo a porta <strong>de</strong> entrada das <strong>em</strong>ergên-8 REME – Rev. Min. Enf; 9(1):07-12, jan/mar, 2005
cias clínicas e traumáticas. Dispõe <strong>de</strong> três leitos fixos,três macas, uma sala <strong>de</strong> expurgo e um sanitário <strong>de</strong> pacientes.Além dos serviços médicos tradicionais, ofereceatendimento com especialistas nas áreas <strong>de</strong> neurologia,traumatologia, pediatria, cirurgia geral e especializada.O estudo foi realizado através <strong>de</strong> observação participantelivre e <strong>de</strong> entrevista s<strong>em</strong>i-estruturada e gravada.Todas as informações colhidas das entrevistas foram transcritas,organizadas na forma <strong>de</strong> um diário <strong>de</strong> campo, analisadasagrupando-se as idéias convergentes e fazendorelação com a bibliografia disponível.Cada família foi i<strong>de</strong>ntificada com a letra F seguida donúmero que correspon<strong>de</strong> à ord<strong>em</strong> <strong>em</strong> que apareceu noestudo (F1, F2 ou F3). Os pesquisadores permitiram queos investigados escolhess<strong>em</strong> um nome fictício para a participaçãono estudo a fim <strong>de</strong> preservar suas i<strong>de</strong>ntificaçõespessoais. Assim, a i<strong>de</strong>ntificação da família seguiu estaord<strong>em</strong>: nome fictício do familiar – número correspon<strong>de</strong>nteda família na entrevista (F1, F2 ou F3) – grau <strong>de</strong>familiarida<strong>de</strong> com o paciente. Ex<strong>em</strong>plo: Alice – F2 – Neta.RESULTADOS E DISCUSSÕESEm 2002, o Ministério da Saú<strong>de</strong>, reconhecendo a relevânciado setor <strong>de</strong> urgências e <strong>em</strong>ergências na saú<strong>de</strong>pública, publicou a Portaria 2048/2002 4 . Através <strong>de</strong>la,reconhece-se o aumento da d<strong>em</strong>anda <strong>de</strong> atendimento, ainsuficiente estruturação <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> assistencial e a gran<strong>de</strong>distância entre os municípios, prejudicando os primeirosatendimentos. Resolveu-se criar os chamados Sist<strong>em</strong>asEstaduais <strong>de</strong> Urgência e Emergência, contribuindopara a regionalização da assistência, tão preconizada pelaNorma Operacional Básica (NOB) 01/2002 do Sist<strong>em</strong>aÚnico <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>.Segundo a Portaria, as urgências e <strong>em</strong>ergências nopaís serão coor<strong>de</strong>nadas pelos estados e municípios, quese responsabilizam pelo recebimento dos recursos, suaaplicação a<strong>de</strong>quada (serviços <strong>de</strong> r<strong>em</strong>oção, ampliação dare<strong>de</strong> pré-hospitalar e intra-hospitalar e a capacitação/recapacitaçãodos profissionais), além da fiscalização noandamento das propostas.As urgências e <strong>em</strong>ergências nos r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> às condições<strong>de</strong> atendimento que exig<strong>em</strong> medidas terapêuticasmediatas e imediatas, <strong>em</strong> que existe risco <strong>de</strong> vida. Nessesentido, pod<strong>em</strong>os classificá-las como procedimentos <strong>de</strong>alta complexida<strong>de</strong>, havendo a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<strong>de</strong> aparatos tecnológicos que reabilit<strong>em</strong> pessoas<strong>em</strong> menor t<strong>em</strong>po possível e com o menor grau <strong>de</strong>seqüelas.Contudo, mesmo que a atenção seja voltada ao paciente,o familiar ali presente também necessita <strong>de</strong> atenção.Eles perceb<strong>em</strong> e se preocupam com o que está acontecendo,s<strong>em</strong>, muitas vezes, enten<strong>de</strong>r a gravida<strong>de</strong> e ocomportamento dos profissionais da saú<strong>de</strong>. As seguintesfalas dos familiares <strong>em</strong>basam nossa preocupação:Eu acho que o paciente quando chega, se é um casoque é <strong>em</strong>ergência, entra direto, tá? Só que eu achoque <strong>de</strong>pois que tu tocou nele, viu mais ou menos aprimeira vista... já fala então, uma pequena notícia...dizer alguma coisa, falar alguma coisa... a pessoa ficaali trancada, não po<strong>de</strong> entrar, não po<strong>de</strong> falar também..quando tiver<strong>em</strong> boa vonta<strong>de</strong> eles te chamam, ou <strong>em</strong>certos casos... só chamam quando morreu.. (Brenda –F1 – Filha).Quando a gente entra está tudo calmo, então elesestavam todos brincando, então na hora que t<strong>em</strong>movimento eu não sei o que eles estão fazendo, eu nãosei <strong>de</strong> nada (choros). Essa é a realida<strong>de</strong>, qu<strong>em</strong> te garanteque eles estão vendo, se a minha vó está vomitando alise eles estão lá no canto? Então o único momento queeu tenho contato eu não tenho contato, eu só fico paradaolhando, dois minutos no máximo, porque tu tens queentrar rápido e sair rápido... eu quero saber, eu não tosabendo, eu só entrei ali e saí e não sei <strong>de</strong> nada econtinuo lá na frente, naquele horror, sentada, olhando,sofrendo... se eu tivesse espírito eu seria médica, nãoseria uma pessoa comum, eu não tenho espírito praisso, não tenho condições <strong>de</strong> estar ali, exposta aquilotudo... ... qualquer atenção às pessoas que tão aliesperando, a mínima atenção que tu tiver, mínima, tunão esquece, sabe? (Alice – F2 – Neta).... eu penso assim... eles (profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>) quer<strong>em</strong>que morra mesmo pra ser menos um, é, eu acho queé, os médicos não estão n<strong>em</strong> aí, ainda ficam rindo umpro outro, e eu choro quando eu chego <strong>em</strong> casa, euchoro que n<strong>em</strong> sei... (Patrícia – F1 – Esposa).No ambiente <strong>de</strong> atendimento intensivo há umasupervalorização dos procedimentos técnicos <strong>em</strong> prejuízodo relacionamento com o paciente e seus familiares.Diante <strong>de</strong>ssas situações, os profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> apresentamos mais variados comportamentos, os quais constitu<strong>em</strong>estratégias que representam uma forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesapsicológica contra a dor e o sofrimento psíquico do outroe que geram um distanciamento afetivo-<strong>em</strong>ocional,b<strong>em</strong> como uma impessoalida<strong>de</strong> do cuidado (4,11,12) .Entend<strong>em</strong>os que durante a internação <strong>em</strong> uma unida<strong>de</strong>crítica, como UTI ou <strong>em</strong>ergência, o profissional<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> se vê diante da complicação potencial do quadroclínico e das necessida<strong>de</strong>s psicossociais <strong>de</strong> pacientese familiares. As mo<strong>de</strong>rnas tecnologias <strong>em</strong> equipamentos,como os novos antibióticos e os respiradoresartificiais, são ex<strong>em</strong>plos <strong>de</strong> instrumentais que visam apreservar a vida que está <strong>em</strong> risco. Assim, o profissional<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> acaba priorizando, <strong>em</strong> princípio, a manutençãodas condições vitais do paciente, distanciandosedo vínculo, do acolhimento e do relacionamentoterapêutico não somente com o próprio paciente, comotambém com sua família, <strong>de</strong>sestabilizada com a situação,que também carece <strong>de</strong> atenção e <strong>de</strong> acompanhamentosist<strong>em</strong>ático e contínuo.Os usuários que necessitam <strong>de</strong> atendimento nas unida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> Pronto-Socorro conviv<strong>em</strong>, diariamente, commuitas contradições. Os pacientes esperam aresolutivida<strong>de</strong>, porém observam um atendimento pura-4BRASIL, Ministério da Saú<strong>de</strong>. Portaria 2048 <strong>de</strong> 05 <strong>de</strong> nov<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2002. Dispõe sobre a Regulamentação Técnica dos Sist<strong>em</strong>as Estaduais <strong>de</strong> Urgência eEmergência; 2002.REME – Rev. Min. Enf; 9(1):07-12, jan/mar, 2005 9