O SUJEITO E A INSTITUIÇÃO …assistência que ainda predomina t<strong>em</strong> suas práticascentradas no atendimento terciário, tendo o hospitalpsiquiátrico como referência. Entretanto, importantesmudanças no sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública do País vêm acontecendo,possibilitando a criação <strong>de</strong> um cenário privilegiadopara impl<strong>em</strong>entação <strong>de</strong> transformações significativasdas práticas e saberes na área da saú<strong>de</strong> mental.Esse novo cenário surge com a reforma psiquiátricaque, por meio do discurso <strong>de</strong> vários atores sociais, promoveuma mudança <strong>de</strong> paradigma <strong>de</strong>slocando o lugar dolouco, que antes era representado apenas pelo discursoda medicina. A reforma psiquiátrica representou umaestratégia fundamental para que ocorress<strong>em</strong> mudançasna assistência prestada ao portador <strong>de</strong> sofrimento psíquicodo final dos anos 70 até os dias atuais, tendo comoobjetivo principal a <strong>de</strong>sconstrução do processo <strong>de</strong> segregaçãosocial da loucura. Trata-se <strong>de</strong> um movimentoque questiona as condições marginalizadas <strong>de</strong> vida e aforma exclu<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> atenção a que estão submetidas aspessoas com sofrimento mental.A Reforma Psiquiátrica é um processo histórico <strong>de</strong>formulação crítica e prática <strong>de</strong> propostas mais ousadas,que visam o resgate da cidadania através do <strong>de</strong>smonteprogressivo dos hospitais psiquiátricos e a criação <strong>de</strong>serviços substitutivos, tais como centros <strong>de</strong> referência<strong>em</strong> saú<strong>de</strong> mental, hospital-dia, centro <strong>de</strong> convivência eambulatórios (9) . Trata-se <strong>de</strong> um movimento <strong>em</strong> prol daconstrução da cidadania e da reabilitação psicossocial doportador <strong>de</strong> sofrimento psíquico.No Brasil, a Reforma Psiquiátrica surge <strong>de</strong> forma maisconcreta <strong>em</strong> fins da década <strong>de</strong> 70. As imagens <strong>de</strong> pacientespsiquiátricos flagrados <strong>em</strong> pleno abandono nos pavilhões,corredores e quartos <strong>de</strong> manicômios brasileirosassustaram o país nas décadas <strong>de</strong> 70 e 80. Nos anos 80,com a Reforma Sanitária, privilegia-se no campo da saúd<strong>em</strong>ental a discussão e a adoção <strong>de</strong> um movimento <strong>de</strong>humanização da assistência ao doente mental. Esse movimento,que até então se restringia à humanização doshospitais psiquiátricos, amplia-se com discussões sobreas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> atendimento fora do hospital. Surgeo movimento chamado <strong>de</strong> <strong>de</strong>sinstitucionalização.Desinstitucionalização toma um significado <strong>de</strong><strong>de</strong>sconstrução do processo <strong>de</strong> segregação social da loucura,e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, <strong>de</strong> recomposição da cidadaniado doente mental. Segundo Amarante, “não significaapenas <strong>de</strong>sospitalização, mas <strong>de</strong>sconstrução, isto é, separação<strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo arcaico centrado no conceito <strong>de</strong>doença como falta e erro, centrado no tratamento dadoença como entida<strong>de</strong> abstrata (...) é um processo, nãoapenas técnico, jurídico, legislativo ou político; é acima<strong>de</strong> tudo, um processo ético, <strong>de</strong> reconhecimento <strong>de</strong> umaprática que introduz novos sujeitos <strong>de</strong> direito e novosdireitos para os sujeitos”. (9)Nesse sentido, o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sinstitucionalização,compreendido como a transformação da maneira <strong>de</strong> lidarcom a experiência da loucura, não se i<strong>de</strong>ntifica apenascom as propostas que objetivam a simples reorganizaçãodos serviços extra-hospitalares, mas requer a produção<strong>de</strong> novas formas <strong>de</strong> pensar a instituição, percebere interagir com a experiência do sofrimento psíquico.Delineia suas práticas e saberes na construção <strong>de</strong> umnovo modo <strong>de</strong> tratar e conviver com a loucura. ParaRotelli (10) , “esse processo dar-se-ia através <strong>de</strong> um trabalhoterapêutico enriquecedor da assistência global, complexae concreta dos pacientes; construindo-se estruturasexternas diferentes aos manicômios”.No que diz respeito à <strong>de</strong>sinstitucionalização comoum processo, contrastando-a com a possível cronificação(institucionalização), mencionamos a probl<strong>em</strong>ática <strong>em</strong>torno das reinternações dos pacientes. Um doscondicionantes institucionais que confirma ainda o hospitalcomo referência do tratamento da crise psíquica ereforça a exclusão e segregação do doente mental é oconstante retorno do paciente à instituição hospitalarpsiquiátrica. As reinternações do mesmo, b<strong>em</strong> como asinternações prolongadas, acabam resultando na perdados laços sociais e na dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> readaptação dospacientes à socieda<strong>de</strong>.No que diz respeito a esses retornos, acreditamosque pacientes com história <strong>de</strong> várias internaçõesestabeleceram, ao longo dos anos, vínculos apenas coma instituição hospitalar. A sua qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida, durantea permanência na instituição hospitalar, muitas vezesencontra-se <strong>em</strong>pobrecida, com sérias limitações dashabilida<strong>de</strong>s sociais e da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> autonomia paraativida<strong>de</strong>s da vida diária. Acreditamos, ainda, que o recebimentodos egressos e suas famílias pelos serviçossubstitutivos, no momento da saída da instituição hospitalar,é importante para a <strong>de</strong>sinstitucionalização <strong>de</strong>ssespacientes.A <strong>de</strong>smontag<strong>em</strong> dos hospitais psiquiátricos e as mudanças<strong>de</strong> paradigma na assistência psiquiátrica, segundoDelgado (11) , implicam a transformação das relações <strong>de</strong>po<strong>de</strong>r, o rompimento com todo o sist<strong>em</strong>a punitivo-coercitivoe o resgate da singularida<strong>de</strong> do doente mental,rotulado, durante décadas, apenas como “louco”. Para asuperação do mo<strong>de</strong>lo hospitalocêntrico, é fundamentalrelativizar o po<strong>de</strong>r para transformar as relações, as instituiçõese os contextos, acentua o autor. Isso significareconstruir as bases objetivas <strong>de</strong>ssa realida<strong>de</strong>,redimensionando os dados subjetivos que a sustentam.A reestruturação da assistência psiquiátrica impõe,portanto, a revisão crítica do papel heg<strong>em</strong>ônico ecentralizador do hospital psiquiátrico e, ao mesmo t<strong>em</strong>po,propõe uma reflexão acerca do trabalho realizadonos serviços substitutivos.Na tentativa <strong>de</strong> modificação das crenças e preconceitosda socieda<strong>de</strong> <strong>em</strong> relação ao doente mental, <strong>de</strong>v<strong>em</strong>osnos atentar para a maneira como os profissionaisentend<strong>em</strong> e lidam com a loucura. Dentro dos serviçossubstitutivos corr<strong>em</strong>os o risco <strong>de</strong> repetir a mesma lógicamanicomial se não romp<strong>em</strong>os com os paradigmas quefundamentam a assistência psiquiátrica. Desviat (8) mencionaque “o que faz a instituição não são os muros, masas pessoas; os muros mais difíceis <strong>de</strong> se transpor são oscriados pelas pessoas, porque estes têm uma consciênciamuito real”. Juntamente com pacientes e familiares,os profissionais <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser vistos como seres ativos e<strong>em</strong>penhados na construção do projeto proposto pelareforma psiquiátrica.68 REME – Rev. Min. Enf; 9(1):65-69, jan/mar, 2005
A reforma psiquiátrica permite a inclusão <strong>de</strong> conceitosimportantes que por tantos anos estiveram fora dodiscurso no trato com a loucura: <strong>de</strong>sospitalização,<strong>de</strong>sinstitucionalização, reabilitação psicossocial, cidadão,sujeito. Os serviços substitutivos traz<strong>em</strong> consigo estesconceitos e estão ligados à noção <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong>, pois<strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser dispositivos dinâmicos, que produzam ação epromovam uma nova concepção - a concepção da diferença.Não se trata <strong>de</strong> impor a igualda<strong>de</strong>, mas <strong>de</strong> garantiro respeito à diferença, “fazer das experiências da loucuraalgo que possa transmitir na cultura, s<strong>em</strong> exclusãoda subjetivida<strong>de</strong>, ou seja, sustentando a possibilida<strong>de</strong> dosujeito”. (12) Como diz Cavalcanti (13) “o probl<strong>em</strong>a não estátanto <strong>em</strong> ‘pirar ou não pirar’ mas <strong>em</strong> o que se faz comesta ‘piração’ (...) ajudá-lo a fazer <strong>de</strong>sta tragédia existencialalgo que vale a pena”.O portador <strong>de</strong> sofrimento psíquico po<strong>de</strong> ser sujeito<strong>de</strong> sua própria história e para que isso seja possível épreciso extinguir a lógica manicomial que circunscreve ouniverso da loucura. A reforma psiquiátrica traz essapossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interação entre a socieda<strong>de</strong>, a loucura eas instituições. Assim, a socieda<strong>de</strong> po<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a enten<strong>de</strong>re respeitar o “louco” <strong>em</strong> seu direito <strong>de</strong> ser o queele é, <strong>em</strong> sua realida<strong>de</strong> psíquica. Trata-se, portanto, <strong>de</strong>um movimento que busca restituir ao “louco” o direito<strong>de</strong> expressar sua subjetivida<strong>de</strong> com dignida<strong>de</strong>, s<strong>em</strong> estigmas,s<strong>em</strong> preconceitos.CONSIDERAÇÕES FINAISA <strong>de</strong>sinstitucionalização como um processo, objetivanão apenas a reorganização dos serviços substitutivos,mas requer a produção <strong>de</strong> novas formas <strong>de</strong> pensar einteragir com a experiência da loucura, promovendotransformações na realida<strong>de</strong> assistencial. Salientamos quea <strong>de</strong>smontag<strong>em</strong> dos hospitais psiquiátricos implica tambémmudanças no saber e no fazer dos trabalhadores,seres <strong>de</strong> transformação do contexto e das relações.Os princípios que norteiam a reforma psiquiátricaapresentam-se como possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> mudança da relaçãosujeito/instituição. Sendo um processo complexo e<strong>em</strong> construção, gera experiências que conduz<strong>em</strong> aoaprendizado e ao aprimoramento na busca da melhorforma <strong>de</strong> lidar com a loucura. Transformando a realida<strong>de</strong>assistencial, a reforma psiquiátrica oferece um entrelaceentre a cida<strong>de</strong> e a loucura, priorizando a dimensãoda cidadania. Nesse sentido, transformam-se as relações,as instituições e o contexto, produzindo possibilida<strong>de</strong>spara tornar-se sujeito.Consi<strong>de</strong>rando todas as conquistas da reforma psiquiátrica,a política atual <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mental traz um avançosignificativo <strong>em</strong> relação à política que tinha ahospitalização como único mecanismo para o tratamentodo portador <strong>de</strong> sofrimento psíquico.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1-Vianna P. A reforma psiquiátrica e as associações <strong>de</strong> familiares: unida<strong>de</strong>e oposição. 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