A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA FAMÍLIA…cia política e socioeconômica constituindo-se como pólos<strong>de</strong> visões <strong>de</strong> mundo diametralmente opostas: Espartae Atenas. É no legado <strong>de</strong>ssas organizações sociais quepod<strong>em</strong>os i<strong>de</strong>ntificar traços significativos da estrutura familiaroci<strong>de</strong>ntal, fundada na tradição “greco-romana-judaica-cristã”.Esparta reconhecia na guerra sua vocação e a própriajustificativa para sua existência. A educação visava aformação <strong>de</strong> bons soldados, privilegiando a formação físicae militar. Por volta dos sete anos, as crianças dosexo masculino eram entregues ao Estado que assumia afunção <strong>de</strong> <strong>completa</strong>r a sua educação, preparando-as para“obe<strong>de</strong>cer, resistir ao cansaço e vencer os combates”.A rigi<strong>de</strong>z e a disciplina impostas aos cidadãos <strong>de</strong> Espartapod<strong>em</strong> ser <strong>de</strong>tectadas <strong>em</strong> algumas expressões que sãoutilizadas, cont<strong>em</strong>poraneamente, nas socieda<strong>de</strong>s oci<strong>de</strong>ntaiscomo, por ex<strong>em</strong>plo, “ vida espartana” – para significarvida dura. As mulheres <strong>de</strong> Esparta também recebiam,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância, treinamento físico que incluía a prática<strong>de</strong> ginástica e a participação <strong>em</strong> jogos. Recebiam,além disso, treinamento “psicológico” com o objetivo<strong>de</strong> prepará-las para ser<strong>em</strong> mães e esposas <strong>de</strong> guerreiros.De maneira geral, pod<strong>em</strong>os afirmar que as mulheresespartanas gozavam <strong>de</strong> maior autonomia do que asmulheres <strong>de</strong> outras cida<strong>de</strong>s-estados porque lhes cabia,juntamente com seus maridos, a participação na administraçãodo patrimônio familiar.De maneira mais acentuada, a socieda<strong>de</strong> ateniense eraorganizada para o mundo masculino. Na família, o espaçof<strong>em</strong>inino era o das funções domésticas. O casamento dasfilhas adolescentes era tratado pelo pai e, após as núpcias,as mulheres ficavam sob o domínio total dos maridos. Anoção <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong> f<strong>em</strong>inina estava ligada à idéia da mulherque ficava <strong>em</strong> casa e mantinha o silêncio. Enquanto asmulheres eram preparadas para b<strong>em</strong> <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhar as funçõesdomésticas <strong>de</strong> maneira singela e submissa, os homenseram treinados para <strong>de</strong>senvolver um conjunto <strong>de</strong>habilida<strong>de</strong>s físicas e qualida<strong>de</strong>s morais bastante sofisticadas.A educação dos homens atenienses, ao contrário daespartana, era flexível e aberta, buscando a integração entrecorpo e mente <strong>de</strong> forma harmoniosa. (5)Já, na socieda<strong>de</strong> romana, a família vivia sob a autorida<strong>de</strong>do pátrio po<strong>de</strong>r. O hom<strong>em</strong>, casado ou não, tinhana figura do pai o seu juiz natural que po<strong>de</strong>ria con<strong>de</strong>náloà morte por sentença privada. O adulto com pai vivonão podia concluir um contrato, libertar um escravo,elaborar seu testamento ou fazer carreira. Tudo quepossuía pertencia ao pai cuja capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> testador eraquase infinita. O direito <strong>de</strong> primogenitura não existia ecabia ao pai, escolher qual <strong>de</strong> seus filhos seguiria carreirapois as vagas no Senado e nos Conselhos das cida<strong>de</strong>seram poucas e os custos, bancados pelas famílias, muitoaltos. O parricídio acontecia com relativa freqüência e,por ocasião da morte do pai, era anunciada a herança eos filhos tornavam-se adultos.O testamento era <strong>de</strong> imenso valor na Roma Antiga ea sua leitura um acontecimento público, grandioso <strong>em</strong>otivo <strong>de</strong> orgulho para a socieda<strong>de</strong> da época. Através<strong>de</strong>le, <strong>de</strong>finiam-se os her<strong>de</strong>iros, exaltavam-se os maisqueridos, libertavam-se os escravos, insultavam-se os quehaviam sido <strong>de</strong>testados e <strong>de</strong>signavam-se os her<strong>de</strong>irossubstitutos.O casamento era um ato privado, não existindo contratopor escrito e não sendo necessária a presença <strong>de</strong>um juiz ou <strong>de</strong> um padre para celebrá-lo. As pessoas secasavam para receber um dote, ter filhos legítimos eperpetuar o corpo cívico. Configurava-se como uma dasopções <strong>de</strong> vida do cidadão, e a esposa juntamente comos filhos, os libertos, os clientes e os escravos obe<strong>de</strong>ciamao senhor. Em caso <strong>de</strong> litígio por uma herança, buscavam-seprovas para <strong>de</strong>cidir se um hom<strong>em</strong> e uma mulhereram legitimamente casados e test<strong>em</strong>unhas eram ,então, convocadas.O nascimento <strong>de</strong> um romano não era apenas um fatobiológico. Ele só vinha ao mundo por <strong>de</strong>cisão do chefe<strong>de</strong> família e a criança não reconhecida pelo pai era expostadiante da casa ou num local público para ser recolhida.As crianças malformadas eram enjeitadas ou afogadaspois, para os romanos, era necessário separar oque é bom do que não serve para nada. (6)Logo que as crianças nasciam, eram confiadas a umanutriz. Nessa época, as mães não amamentavam seusfilhos e as nutrizes eram encarregadas, além daamamentação, da educação das crianças até a puberda<strong>de</strong>juntamente com um “pedagogo” ou “nutridor”. Tantoa nutriz como o pedagogo constituíam uma vice-famíliapara a criança e recebiam indulgências e complacênciasdo senhor.Até <strong>completa</strong>r<strong>em</strong> doze anos, os meninos e meninasfreqüentavam escolas mistas. Após essa ida<strong>de</strong>, somenteos meninos que pertenciam às classes abastadas, continuavama estudar “para adornar o espírito, para se instruirnas belas letras....Em Roma, não se ensinavam matériasformadoras n<strong>em</strong> utilitárias, e sim prestigiosas e,acima <strong>de</strong> tudo, a retórica”. (6) A escola romana permaneciaseparada da rua e da ativida<strong>de</strong> política e religiosa, eeram consi<strong>de</strong>rados cultos os que aprendiam a língua e aliteratura grega. Ao contrário, a escola grega constituíaparte da vida pública e o esporte ocupava meta<strong>de</strong> daeducação. Não aprendiam o latim e ignoravam os escritoresromanos.Faziam parte da educação intelectual do menino romanoo esporte e a caça. Nadar, correr, marchar, montara cavalo, manejar o arco, a espada e o machado eramativida<strong>de</strong>s indispensáveis para a sua educação, pois omenino <strong>de</strong>veria saber matar e combater para protegersua parentela. A finalida<strong>de</strong> da caça não consistia apenas<strong>em</strong> abastecer as cozinhas, mas, também, <strong>em</strong> treinar paraa guerra, para a arte <strong>de</strong> matar. Aos quatorze anos, omenino abandonava as vestes infantis e as <strong>de</strong>zesseis podiaoptar pela vida pública ou entrar no exército.Quanto às meninas, eram dadas <strong>em</strong> casamento aosdoze anos e, no máximo, aos quatorze eram consi<strong>de</strong>radasadultas. Eram encerradas <strong>em</strong> casa e <strong>de</strong>dicavam-se àsativida<strong>de</strong>s da roca e do fuso. Se tivess<strong>em</strong> talento, aprendiama dançar, a cantar e a tocar um instrumento.As ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> lazer consistiam nas idas aos banhospúblicos e aos gran<strong>de</strong>s espetáculos: teatro, corridas <strong>de</strong>cavalos no Circo, lutas <strong>de</strong> gladiadores ou <strong>de</strong> caçadores<strong>de</strong> feras. Essas ativida<strong>de</strong>s eram partilhadas pelos homens,72 REME – Rev. Min. Enf; 9(1):70-76, jan/mar, 2005
mulheres, libertos, escravos e crianças. Nos feriadosreligiosos, os romanos ofereciam sacrifícios <strong>de</strong> animais<strong>em</strong> suas casas, e os amigos eram convidados a partilhar<strong>em</strong><strong>de</strong> sua mesa, motivo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> honra.Com a ascensão do cristianismo, mudanças importantesacontec<strong>em</strong> nos i<strong>de</strong>ais morais da época e provocam arenúncia sexual <strong>completa</strong> para alguns, a ênfase na harmoniaconjugal, a <strong>de</strong>saprovação ao segundo casamento <strong>de</strong>viúvas, a rejeição ao divórcio. Evitava-se o casamento <strong>de</strong>pagãos, e o ato sexual passou a representar a fraquezamoral do hom<strong>em</strong>. A sexualida<strong>de</strong> tornou-se um pecado, eo prazer carnal reproduzia o pecado <strong>de</strong> Adão e Eva.A partir <strong>de</strong> meados do século III, a civilização romanaoci<strong>de</strong>ntal começou a sofrer os efeitos dos movimentosmigratórios dos povos que passaram a interagir, tanto <strong>de</strong>forma pacífica como por meio <strong>de</strong> invasões, com os habitantesdo Império Romano. As tribos, que vagueavam pelas“bordas” do território romano, acabaram por se estabelecernas áreas oci<strong>de</strong>ntais da Europa <strong>de</strong>terminando o<strong>de</strong>clínio da civilização romana. Gauleses na atual França,bretões e outras tribos ceutas da gran<strong>de</strong> família indo-européia(à qual também pertenciam gregos e romanos) nasIlhas Britânicas, eslavos e germanos a leste e ao norte doslimites do território do Império Romano, contribuírampara as profundas transformações que <strong>de</strong>terminaram, aolongo dos primeiros <strong>de</strong>z séculos da era cristã, o processo<strong>de</strong> feudalização na Europa Oci<strong>de</strong>ntal. (7)Esses povos não conheciam o Estado e a cida<strong>de</strong> comoorganismos político-administrativos. Dentro dos váriosclãs ou tribos, o po<strong>de</strong>r estava concentrado nas mãos <strong>de</strong>uma “ass<strong>em</strong>bléia” <strong>de</strong> guerreiros, que mais tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>u orig<strong>em</strong>à nobreza medieval. O guerreiro, ou seja o hom<strong>em</strong>livre, era a figura que gozava <strong>de</strong> maior prestígio. (8)A vida social estava centrada nas relações ligadas aoslaços <strong>de</strong> sangue. Nesse sentido, a base da estrutura socialamparava-se na noção geral da existência <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong><strong>de</strong> linhag<strong>em</strong>, que garantia a proteção do grupo<strong>de</strong> pessoas que aí viviam. A mulher partilhava com omarido as tarefas <strong>de</strong> proteção do grupo familiar, tinhadireitos iguais aos dos homens po<strong>de</strong>ndo, inclusive, herdarterras dos pais. Nesse contexto, Duby citado porAriès (9) afirma que “na realida<strong>de</strong>, a família é o primeirorefúgio <strong>em</strong> que o indivíduo ameaçado se protege duranteos períodos <strong>de</strong> enfraquecimento do Estado. Mas assimque as instituições políticas lhe oferec<strong>em</strong> garantiassuficientes, ele se esquiva da opressão da família e oslaços <strong>de</strong> sangue se afrouxam. A história da linhag<strong>em</strong> éuma sucessão <strong>de</strong> contrações e distensões, cujo ritmosofre as modificações da ord<strong>em</strong> política”.A família bárbara <strong>de</strong>via, obrigatoriamente, ser numerosapara po<strong>de</strong>r transmitir a vida e a herança. Váriaspessoas moravam sob o mesmo teto e isso lhes asseguravarefúgio e proteção contra os perigos externos.As cerimônias <strong>de</strong> noivado eram mais exuberantes queas do casamento. Os pais da noiva recebiam uma quantiaque representava uma compra simbólica do po<strong>de</strong>r d<strong>em</strong>ando sobre a mulher. Acontecia um gran<strong>de</strong> banquete,com bebidas, cantos e divertimentos <strong>de</strong>liberadamenteobscenos para estimular a fecundida<strong>de</strong> dos futuros esposos.Na manhã seguinte às núpcias, o hom<strong>em</strong> faziauma doação à esposa como forma <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cimento porsua virginda<strong>de</strong> e pela garantia que os filhos que ela dariaà luz seriam realmente <strong>de</strong>le.Ao contrário do que ocorria com o hom<strong>em</strong>, a vidaprivada da mulher era pública pelas conseqüências quepodia acarretar. Para Ariès e Duby (6) , “o adultério constituiuma verda<strong>de</strong>ira profanação da mulher e da <strong>de</strong>scendência,portanto da sucessão vindoura. Toda união que<strong>de</strong>spreza as condições sociais é impensável porque dissolvea socieda<strong>de</strong> da mesma forma que a mulher espontaneamenteadúltera <strong>de</strong>strói a autenticida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus filhose suprime o carisma do sangue”.A cultura e a religião <strong>de</strong>sses povos mantinham estreitosvínculos com o próprio espírito guerreiro <strong>de</strong>ssa socieda<strong>de</strong>.Os po<strong>em</strong>as e canções improvisadas enalteciam osheróis <strong>de</strong> guerra durante os momentos <strong>de</strong> festas. Entretanto,cada tribo cultuava o seu herói, real ou mitológico,s<strong>em</strong>pre l<strong>em</strong>brado através <strong>de</strong> rituais celebrativos. Os ritosreligiosos eram realizados ao ar livre, nos bosques e montanhas,indicando a inexistência <strong>de</strong> t<strong>em</strong>plos. Tais ritosocorriam <strong>em</strong> datas <strong>de</strong>scontínuas e, ainda, <strong>em</strong> ocasiõesparticulares <strong>de</strong> cada clã. Portanto, a unida<strong>de</strong> religiosa nãopô<strong>de</strong> ser i<strong>de</strong>ntificada <strong>em</strong> meio às tribos. Não raro, aconteciamsacrifícios humanos e <strong>de</strong> animais. (10)Muito do nosso legado cultural po<strong>de</strong> ser i<strong>de</strong>ntificadopela “contaminação” entre os costumes greco-romanose aqueles próprios das tribos “bárbaras”. Alguns traços<strong>de</strong> conotação nitidamente positiva pod<strong>em</strong> ser encontrados<strong>em</strong> el<strong>em</strong>entos festivos como a árvore <strong>de</strong> Natal –associada ao culto à árvore do paraíso e à felicida<strong>de</strong> dafamília – e, também, no hábito do contato físico ao cumprimentar– para os “bárbaros” esten<strong>de</strong>r a mão era prova<strong>de</strong> que não se estava armado. Por outro lado, outraspartes <strong>de</strong>sse legado não foram tão positivas: os vândalos,por ex<strong>em</strong>plo, <strong>de</strong>ram seu nome a uma das mais belasregiões da Espanha, a Andaluzia – terra dos vândalos –mas o termo vandalismo tornou-se sinônimo <strong>de</strong> <strong>de</strong>struiçãobrutal <strong>em</strong> vários idiomas. Mesmo <strong>de</strong>pois do períododas invasões, a palavra “bárbaro” foi s<strong>em</strong>pre associadaàs idéias <strong>de</strong> brutalida<strong>de</strong>, violência e ignorância.A conquista e a ocupação dos territórios, antes pertencentesao Império Romano, por essas tribos “bárbaras”,favoreceram o processo <strong>de</strong> ruralização da EuropaOci<strong>de</strong>ntal, a partir da distribuição <strong>de</strong> terras pelos chefesdas tribos entre a aristocracia <strong>de</strong> guerreiros. Anos maistar<strong>de</strong>, alianças entre os principais chefes e a Igreja CatólicaRomana possibilitaram tanto a efetiva cristianizaçãoda socieda<strong>de</strong> quanto a prática <strong>de</strong> distribuição <strong>de</strong> terraspara o clero. Gran<strong>de</strong>s proprieda<strong>de</strong>s rurais eram concedidascomo feudos e, <strong>de</strong>sse modo, qu<strong>em</strong> as recebia tornava-seum senhor feudal. Aquele que cedia o b<strong>em</strong> setornava suserano e qu<strong>em</strong> o recebia passava a ser seuvassalo. Como as relações <strong>de</strong> vassalag<strong>em</strong> eram firmadashierarquicamente, formou-se uma ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> proprietários<strong>de</strong> terras ligados uns aos outros por laços <strong>de</strong>suserania e vassalag<strong>em</strong>. Todos eles viviam da renda e dotrabalho dos camponeses. Dentro <strong>de</strong> seus limitesterritoriais, o senhor feudal exercia a autorida<strong>de</strong> máxima,expressando a inexistência <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r políticocentralizado. O conseqüente <strong>de</strong>saparecimento das es-REME – Rev. Min. Enf; 9(1):70-76, jan/mar, 2005 73