O mundo-vida no...O MUNDO-VIDA NO CONTEXTO HOSPI-TALARPor se caracterizar<strong>em</strong> como locais <strong>de</strong> assistência àspessoas <strong>em</strong> estado crítico <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, os Centros <strong>de</strong> TratamentoIntensivo, ao longo dos anos, têm sido reconhecidospela população <strong>em</strong> geral, como um "lugar para amorte". Mesmo sendo criado a fim <strong>de</strong> possibilitar uma<strong>de</strong>dicação maior e cuidados especializados aos pacientes,consi<strong>de</strong>rados graves, mas com chance <strong>de</strong> recuperação,esse mito parece persistir para a maioria das pessoas,inclusive, entre aqueles que nele se internam. Logo, nãohá como estranhar que um dos pesquisados tenha feitoreferência a essa crença. A experiência ao se internar nosetor, entretanto, lhe possibilitou <strong>de</strong>scobrir uma realida<strong>de</strong>diferente daquela que imaginava e assim refazer osconceitos <strong>em</strong> relação a ela. A maneira como se expressana unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> significado permite supor que houve umacerta surpresa ao ver transformado o juízo que anteriormentefazia do setor.... é um lugar <strong>de</strong> on<strong>de</strong> as pessoas d<strong>em</strong>oram a sair ousa<strong>em</strong> mortas. Mas com ela foi diferente; recebeu osmelhores cuidados possíveis (DISC. 9).Em relação ao mundo-circundante <strong>de</strong>ntro do hospital,dois aspectos foram avaliados. Por um lado, segundoa percepção <strong>de</strong> um <strong>de</strong>poente, a unida<strong>de</strong> é retratada comoisenta <strong>de</strong> barulho e <strong>de</strong> circulação <strong>de</strong> pessoas, <strong>de</strong> acordocom o que <strong>de</strong>veria ser planejado e se espera para acolhero paciente <strong>em</strong> situação crítica que nele se interna.Por outro lado, exist<strong>em</strong> pacientes com visão oposta, classificandoo CTI como um local estressante e pouco familiar<strong>de</strong>vido ao excesso <strong>de</strong> aparelhos, ao barulho provocadopor eles e pela movimentação dos funcionários queali trabalham. Há ainda qu<strong>em</strong> reclama da intensida<strong>de</strong> dosestímulos sonoros e os seus efeitos sobre o sono.Aqui é oportuno pensar sobre o impacto <strong>de</strong>sses fatoresno paciente <strong>de</strong> modo a interce<strong>de</strong>r, no que for possível,para que o seu mundo-circundante seja mais acolhedor,apesar da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> manter os aparelhos comocoadjuvantes no processo <strong>de</strong> cuidar.A falta <strong>de</strong> privacida<strong>de</strong> durante a permanência na unida<strong>de</strong>foi novamente mencionada por uma paciente aocomentar que ficava ansiosa ao presenciar todos os acontecimentosà sua volta. Ouvia as conversas, percebia quandoalguém tinha o seu estado <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> agravado e atémesmo se estava prestes a morrer. A separação dos leitospor cortina não lhe garantia a tranqüilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> quetanto precisava no período <strong>de</strong> internação.A coexistência quase que <strong>em</strong> comum no CTI possibilitaum estreitamento <strong>de</strong> sentimentos entre os internos.Há momentos, <strong>de</strong>clara um, que mesmo sentindo-se b<strong>em</strong>,entristecia-se ao presenciar o sofrimento <strong>de</strong> outros companheirosao lado.Mesmo estando b<strong>em</strong>, entristecia-se ao ver o sofrimentodos outros pacientes (DISC. 11).Mesmo conscientes <strong>de</strong> que a presença é essencialmenteser-com, já que o mundo da presença é um mundocompartilhado (4) , pensa-se que, nestes casos, pela proporçãodos agravos do corpo, os pacientes do CTI <strong>de</strong>veriamser poupados do compromisso <strong>de</strong> estar<strong>em</strong> atentose zelar pela vida <strong>de</strong> outros.Entre as queixas das pessoas pesquisadas, odistanciamento dos familiares imposto pelas normas dainstituição é referido como uma das dificulda<strong>de</strong>s vivenciadasnos momentos <strong>de</strong> transtornos existenciais por que passamnesses centros. O <strong>de</strong>poimento citado a seguir expressao estado <strong>de</strong>sesperador <strong>em</strong> que ficou a paciente ao perceber-sesozinha, frente à possibilida<strong>de</strong> da morte e s<strong>em</strong> autonomiapara fazer valer o seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> manter os familiaresao seu lado. Incapaz <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o sentido darestrição, <strong>de</strong>ixa transparecer, no <strong>de</strong>poimento, a sua indignação<strong>de</strong> não po<strong>de</strong>r contar com ninguém da família nosmomentos <strong>em</strong> que <strong>de</strong>la mais precisava.No CTI permaneceu sozinha no quarto, então começoua gritar um e outro, inclusive seu marido, pois pensavaque ele estivesse por perto (...) e ficava imaginandoque morreria sozinha. Não sabia como fazer paramudar aquela situação (...). Lamentava a ausência <strong>de</strong>sua irmã (DISC. 7).A experiência <strong>de</strong> ficar aguardando o dia <strong>de</strong> visita étraduzida por um t<strong>em</strong>po existencial carregado <strong>de</strong> significação.Neste sentido, observa-se uma contag<strong>em</strong> do t<strong>em</strong>poque ganha as proporções dos sentimentos vividos pelos<strong>de</strong>poentes, fazendo com que os dias das visitas d<strong>em</strong>orass<strong>em</strong>a chegar e o período <strong>de</strong> permanência dos familiaresna unida<strong>de</strong> passasse com rapi<strong>de</strong>z.No enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> uma das pessoas ouvidas, a enfermeiramostra-se submissa às rotinas, inflexível no atendimentoao paciente e à família. Insinua que as normas dosetor sobrepõ<strong>em</strong> os interesses daqueles os quais ela ajudaa cuidar. Não só <strong>em</strong> relação às visitas isto é verificado,mas nos cuidados <strong>de</strong> modo geral. Salienta que o bomsenso<strong>de</strong>veria prevalecer <strong>em</strong> certas ocasiões, uma vezque são pacientes graves cujas famílias estão s<strong>em</strong>pre naexpectativa das notícias e ansiosas para ficar<strong>em</strong> junto <strong>de</strong>les.Quando conseguia cochilar, alguém a acordava paraverificar sua pressão que não era a causa <strong>de</strong> suainternação (...). Sabe que regras exist<strong>em</strong> para ser<strong>em</strong>cumpridas. Mesmo assim, é preciso que as enfermeirasanalis<strong>em</strong> cada caso separadamente (...). A flexibilida<strong>de</strong>nas normas possibilitará uma maior assistência aosfamiliares que se sent<strong>em</strong> ansiosos para estar napresença <strong>de</strong> seu ente querido (DISC. 6).É importante reconhecer que as normas <strong>em</strong><strong>de</strong>terminadas situações perd<strong>em</strong> o sentido e não há porque segui-las.Percebe-se, pelo que foi visto no mundo circundantedo CTI, que o paciente n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre consegue permanecerà vonta<strong>de</strong> e não exerce, como gostaria, a sua autonomiamesmo <strong>em</strong> momentos <strong>em</strong> que a sua opção viria lhefavorecer a recuperação. A rotina criada pelas instituições<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, normalmente, faz com que as pessoashospitalizadas pass<strong>em</strong> a viver <strong>de</strong> uma forma conflitiva oseu modo estar-no-mundo, visto que ficam privadas <strong>de</strong>optar<strong>em</strong> sobre seus cuidados e <strong>de</strong>sejos.Assim a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar o sentido das normas,muitas vezes, impe<strong>de</strong> os pacientes <strong>de</strong> criar novas18 REME – Rev. Min. Enf; 9(1):13-19, jan/mar, 2005
estruturas significativas para a atual maneira <strong>de</strong> ser quelhes é imposta no contexto hospitalar. (8)Apesar <strong>de</strong> todas as controvérsias geradas <strong>em</strong> relaçãoaos regimentos e à organização dos serviços no CTI, algumasfalas nos permit<strong>em</strong> apreen<strong>de</strong>r que nele o pacienteparece re<strong>de</strong>scobrir a esperança da recuperação e a segurançapela qualida<strong>de</strong> dos serviços oferecidos. Mesmo diante<strong>de</strong>ste aspecto positivo, na reflexão <strong>de</strong>ste capítuloficou evi<strong>de</strong>nte também que muitas mudanças se requer<strong>em</strong>ao se pensar na liberda<strong>de</strong> e autonomia do paciente<strong>de</strong>ntro da atual estrutura <strong>de</strong>ssas unida<strong>de</strong>s.CONSIDERAÇÕES FINAISApesar <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrirmos novos horizontes capazes<strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r à pergunta que direcionou a nossa pesquisa,reafirmamos que muito se po<strong>de</strong> buscar sobre o fenômenoestudado, pois a percepção <strong>de</strong> cada paciente internadono CTI acompanha o movimento <strong>de</strong> sua experiênciana t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong> existencial, além <strong>de</strong> que o modo <strong>de</strong>focá-la vai <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r também do olhar <strong>de</strong> cada pesquisadorque a preten<strong>de</strong> explorar.As categorias aqui refletidas, entretanto, possibilitaram-noscompreen<strong>de</strong>r parte das dificulda<strong>de</strong>s vivenciadaspor estas pessoas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o momento da admissão até arecuperação e alta.Na simplicida<strong>de</strong> e riqueza <strong>de</strong> suas experiências, <strong>de</strong>scobrimosos sofrimentos, medos, expectativas e outrossentimentos que, pela significação, marcaram as suastrajetórias durante a permanência naquele local.A partir <strong>de</strong> então, t<strong>em</strong>os certeza que, na nossaativida<strong>de</strong> profissional e ao supervisionar os alunos <strong>de</strong> graduação<strong>em</strong> enfermag<strong>em</strong> no ensino clínico junto ao pacientedo CTI, manter<strong>em</strong>os implícita <strong>em</strong> nossas atitu<strong>de</strong>s eorientações esses significados, com vistas ao aprimoramentodos cuidados a ele oferecidos.Compreend<strong>em</strong>os, portanto, que o enfermeiro sópo<strong>de</strong>rá ser-com-o-paciente quando seus mundos seinterpenetrar<strong>em</strong>; se buscar caminhos que prioriz<strong>em</strong> oser resgatando o significado, a individualida<strong>de</strong> e a unicida<strong>de</strong>daquele no qual conviv<strong>em</strong>os no exercício <strong>de</strong> nossa profissão.(9)REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1. Martins J, Bicudo MAV. A pesquisa qualitativa <strong>em</strong> psicologia: fundamentose recursos básicos. São Paulo: Moraes; 1989.2. Severino AJ. Pessoa e existência: iniciação ao personalismo <strong>de</strong>Emmanuel Mounier. São Paulo: Cortez; 1983.3. Merleau-Ponty, M. A estrutura do comportamento. Belo Horizonte:Interlivros; 1975.4. Hei<strong>de</strong>gger M. Ser e t<strong>em</strong>po. 8a ed. Petrópolis: Vozes;1999.5. Luijpen W. Introdução à fenomenologia existencial. São Paulo: EDUSP;1973.6. Cr<strong>em</strong>a R. Saú<strong>de</strong> e plenitu<strong>de</strong>: um caminho para o ser. 2a ed. SãoPaulo: Summus Editorial; 1995.7. Michelazzo J. C. Do um como princípio ao dois como unida<strong>de</strong>:Hei<strong>de</strong>gger e a reconstrução ontológica do real. São Paulo: FAPESP,1999.8.Graças EM. A experiência da hospitalização: uma abordag<strong>em</strong>fenomenológica [tese]. São Paulo: <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> Enfermag<strong>em</strong>, Universida<strong>de</strong><strong>de</strong> São Paulo; 1996.9. Silva AL, Borenstein MS. Ser e viver saudável no mundo: buscandonovos caminhos no cuidar pesquisando com o ser-doente. Texto &Contexto Enf., Florianópolis, 1992 jul/<strong>de</strong>z.; 1 (2): 56-69.REME – Rev. Min. Enf; 9(1):13-19, jan/mar, 2005 19