Montaigne e os canibais: influência no Brasiloutros <strong>de</strong> igual importância. Seja como for, receio que tenhamos os olhos maioresdo que a barriga, mais curiosida<strong>de</strong> do que meios <strong>de</strong> ação, tudo abraçamos,mas não apertamos se não vemos.”Analisando as transformações que se passam na natureza e na geografia, epara mostrar como eram equivocadas as informações sobre o novo continente,afirma: “O homem que tinha a meu serviço, e que voltava do Novo Mundo,era simples e grosseiro <strong>de</strong> espírito, o que dá maior valor a seu testemunho. Aspessoas dotadas <strong>de</strong> finura observam melhor e com mais cuidado as coisas, mascomentam o que vêem e, a fim <strong>de</strong> valorizar sua interpretação e persuadir, nãopo<strong>de</strong>m <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> alterar um pouco a verda<strong>de</strong>. Nunca relatam pura e simplesmenteo que viram; e, para dar crédito à sua maneira <strong>de</strong> apreciar, <strong>de</strong>formam eampliam os fatos. [...] A informação objetiva nós a temos das pessoas muitoescrupulosas ou muito simples, que não têm imaginação para inventar e justificarsuas invenções e igualmente não sejam sectárias. [...] Gostaria que cada qualescrevesse o que sabe e sem ultrapassar o limite <strong>de</strong> seu conhecimento; e issonão só na matéria em apreço, mas em todas as matérias.”E como preâmbulo às consi<strong>de</strong>rações seguintes, <strong>de</strong>clara: “Não vejo nada <strong>de</strong>bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e, na verda<strong>de</strong>, cada qualconsi<strong>de</strong>ra bárbaro o que não se pratica em sua terra. Esses povos não parecem,pois, merecer o qualificativo <strong>de</strong> selvagens, somente por não terem sido senãomuito pouco modificados pela ingerência do espírito humano e não haveremquase nada perdido <strong>de</strong> sua simplicida<strong>de</strong> primitiva.”Para mostrar as características da “bonda<strong>de</strong> natural”, afirma: “Ninguémconcebeu jamais uma simplicida<strong>de</strong> natural elevada a tal grau, nem ninguém jamaisacreditou pu<strong>de</strong>sse subsistir com tão poucos artifícios. É um país, diria eu,à Platão, on<strong>de</strong> não há comércio <strong>de</strong> qualquer natureza, nem literatura, nem matemática;on<strong>de</strong> não se conhece sequer <strong>de</strong> nome um magistrado; on<strong>de</strong> não existehierarquia política, nem domesticida<strong>de</strong>, nem ricos nem pobres. Contratos, sucessões,partilhas, aí são <strong>de</strong>sconhecidos, e em matéria <strong>de</strong> trabalho só sabem daociosida<strong>de</strong>; o respeito aos parentes é o mesmo que <strong>de</strong>dicam a todos; o vestuário,a agricultura, o trabalho nos metais aí se ignoram. Não usam vinho nem43
Alberto Venancio Filhotrigo. As próprias palavras que exprimem a mentira, a traição, a dissimulação, aavareza, a inveja, a calúnia, o perdão, só excepcionalmente se ouvem! Quanto àrepública que imaginavam, me pareceria longe <strong>de</strong> tamanha perfeição.”E continuando a análise, “sua moral resume-se em dois pontos, valentia naguerra e afeição por suas mulheres”. Descreve o modo como fazem a guerra, <strong>de</strong>maneira nobre e cavalheiresca.E, afinal, refere-se à experiência direta em contato com os indígenas brasileirosque foram à Europa na festa <strong>de</strong> Rouen, em 1550, quando ali se encontravao Rei Henrique II. O rei conversou com eles, indagou o que pensavam da cida<strong>de</strong>e eles revelaram três coisas: a primeira, Montaigne diz ter esquecido, masdas duas outras, uma se referia a que tão gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> homens <strong>de</strong> alta estatura,<strong>de</strong> barba na cara, se sujeitassem a obe<strong>de</strong>cer a um rei criança. Em terceirolugar, observavam que tinham visto gente bem alimentada, gozando das comodida<strong>de</strong>sda vida, enquanto a outra meta<strong>de</strong> era <strong>de</strong> homens emagrecidos, esfaimados,miseráveis e achavam extraordinário que essa meta<strong>de</strong> suportasse tantainjustiça, sem se revoltarem e incendiarem a casa dos <strong>de</strong>mais. Prossegue Montaigneque da conversa longa com um dos índios, que era o chefe, indagandopor que tivera essa ascendência, respon<strong>de</strong>u que tinha o privilégio <strong>de</strong> marchar àfrente dos outros quando iam para a guerra. Indagado se conservava algumaautorida<strong>de</strong> em época <strong>de</strong> paz, ele disse: “Quando visito as al<strong>de</strong>ias que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m<strong>de</strong> mim, abrem-me caminhos na capoeira para que eu possa passar sem incômodo.”E conclui Montaigne <strong>de</strong> forma pitoresca e enigmática: “Tudo issoé, em verda<strong>de</strong>, interessante, mas, que diabo, essa gente não usa calções.”O comentário que ele faz ao longo do capítulo, sob certos aspectos inusitadono conjunto dos Ensaios, tem levado à conclusão <strong>de</strong> que se trata, afinal, <strong>de</strong>um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> comparação das socieda<strong>de</strong>s e, através <strong>de</strong>sta comparação, chegar àsituação i<strong>de</strong>al, à vida perfeita. “Montaigne busca o homem original, o homemtotal, a fórmula pura na qual ninguém se fixou, que não é alterada pelos preconceitos,pelos costumes, pela lei. Não é por acaso que ele ficou tanto fascinadopelos índios brasileiros que encontrou em Rouen, que não conhecem nemDeus, nem chefe, nem religião, nem costumes, nem moral.”44
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