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F&N #201

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MAHEZU<br />

Por: Carmo Neto<br />

LUGAR DO TEMPO<br />

Éramos finalistas da primeira oitava classe do Liceu Sagrada Esperança,aos catorze anos de<br />

idade,quando deixamos Malanje,sem pagamento de propinas,por conta do Ministério da<br />

Educação,pela primeira vez num avião que baloiçava,a rasgar o céu.Tinha o coração aos<br />

pulos.Amparávamos o passado a contar anedotas.Líamos o Jornal de Angola que naquele<br />

dia coincidentemente trazia uma reportagem sobre a vida de uma rainha europeia.Mas<br />

da nossa rainha Ginga sepultada no solo malangino,nem sequer o local conhecemos.Os<br />

jornais angolanos nunca visitaram o túmulo da rainha Ginga.<br />

Falávamos do professor de matemática de passo lento,fala mansa,do alto do púlpito arrastava<br />

os pés.Por cada prova numa turma apenas dois a cinco estudantes preenchiam notas positivas.Não o<br />

alcunhamos,uma excepção,porque seu nome já era cómico.Nunca descobrimos a razão dos serviços<br />

notariais se terem distraído tanto e deixaram acontecer!<br />

Enquanto o avião baloiçava enchíamos o espaço com sonoras gargalhadas até que o David com a<br />

costa da mão a reduzir a sonoridade do riso alertou-nos que iríamos aterrar.E aconteceu.Mais surpresos<br />

ficamos a caminho do local que nos alojaria.A cidade de Benguela surpreendia-nos.Parecia não ter<br />

sido visitado pela guerra,naquele ano de mil novecentos e setenta e oito.<br />

O céu azul de Benguela recordava-nos os dias de paraíso na lagoa bar,em Malanje, ou sentados,na<br />

escola preparatória Marques de Pombal.Pelas ruas da cidade sentíamos o acolhimento como em casa<br />

da tia Carolina,lá do bairro Ritondo,mãe de muitos filhos,gerados pelo seu ventre e dos outros que<br />

viviam debaixo das nuvens sem tecto.Tinha um coração do tamanho do mundo.Naquele tempo as mães<br />

eram tutoras de muitos filhos,dos seus e dos outros.Os bandos de pássaros aguçavam nossa imaginação<br />

com a fisga nas mãos.No interior do mini autocarro com à noite a crescer parecíamos engaiolados;<br />

característica do tempo das madrugadas cheias de sons proibidos,por causa do recolher obrigatório.<br />

Lençóis da cor do algodão,quartos de banho perfumados,cozinha com ementa.Fomos assim recebidos.Nosso<br />

colega João de mínimas falas tecia elogiosos comentários sobre o Instituto Normal de Educação<br />

do Lobito.De repente aquilo já não era um só a falar.Todos queriam opinar.Gerava-se um clima<br />

de alegria.Os colegas de Malanje apresentavam-se aos outros do Huambo,Benguela,Moxico e outras<br />

províncias.Um surto de risos ouvia-se espontaneamente no local.O director do instituto cedo percebeu<br />

que os colegas já faziam saltar os olhos sobre as meninas,quando encaminhou-nos para os quartos.<br />

Diferentes espaços da cidade do Lobito,a pastelaria Áurea era o nosso local de frequência,durante<br />

os primeiros meses,sentados logo à entrada.No início não falávamos pra ninguém.Depois que o Lau<br />

travou conhecimento com os clientes habituais da Pastelaria Áurea conheceu a Lola Kaloputu.Ai aquela<br />

gaja(ja),meu Deus!...Lobitanga da Kaponte ,nunca mais saiu de lá.E eu jamais esqueci Benguela,João do<br />

Moxico também, até um dia nos terem anunciado a morte do Briffel.<br />

Excepcional estudante, foi embora pra outro mundo.Decidimos viajar pra Luanda como estudantes<br />

internos do São José do Cluny com o guarda chuva do Ministério da Educação.Nada era subtraído dos<br />

bolsos dos nossos tutores.<br />

Lá conhecemos,algum tempo depois,um garboso comissário político em Luanda.Desenhava-nos no<br />

seu discurso a glória de sermos pilotos pra blindar a liberdade do ensino gratuito.Suas palavras desbravavam<br />

a vida como um lençol branco estendido sobre a cama.E a Eva não resistiu,mesmo com carnes<br />

quase a rasgarem suas roupas,de tão gorda que era,queria ingresso,pra aviação militar.<br />

Anos passados, numa manhã de sábado, eu e o Timóteo cruzamos o mesmo caminho diante do São<br />

José do Cluny.Falamos da malta toda.O sobrinho que lhe acompanhava admirado questionou: -Afinal<br />

aquele governador também esteve aqui no vosso tempo de estudante?<br />

Confirmamos a dúvida. Quis eu também saber do paradeiro da Xica,antiga namorada do Xavier?<br />

-Desde que o chefe roubou-lhe a namorada anda às apalpadelas pelas ruas da cidade.Ela está gorda.<br />

Corre às vezes na marginal,respondeu.<br />

- E o Sousa?<br />

-Depois de concluir o curso de medicina na Europa esteve cá.Foi embora.É director de uma clínica lá.<br />

Quando o tio falava, o sobrinho espiava o rosto, a tentar descobrir algum facto e perguntou se havia<br />

cumprido serviço militar obrigatório.Disse-lhe que sim.Insistente, quis saber se viajávamos fora do<br />

país.Eu e o Timóteo respondemos ao mesmo tempo:<br />

-Sim.Com seiscentos dólares!...<br />

O rapaz explodiu com gargalhadas.<br />

-Também sonhávamos,acrescentei. Um colega nosso quis ser astronauta.Faleceu durante o treino<br />

de voo num Mig . O SONHO TAMBÉM MORRE.O homem se fisgou com Mig/mãe também se evaporou/<br />

perdida na rosa-dos-ventos.<br />

MAHEZU,ngana!<br />

Figuras&Negócios - Nº 201 - JUNHO 2019 29

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