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Fazer download PDF - Fundação Cultural do Estado da Bahia

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LIMA TRINDADEPiazzola. Ele <strong>da</strong>nça com um parceiro imaginário, os braços envolven<strong>do</strong> o própriocorpo esguio. O incrível neste bar é justamente isso, nele você pode ser e querero diferente. Dá-se ao luxo até de ser melancólico numa noite seca de outono. Eromântico. Em uma mesa perto <strong>da</strong> entra<strong>da</strong>, um homem de bigodes bastos seguraa mão de um senhor negro vesti<strong>do</strong> de jeans e camisa de algodão branca.Fumo meu cigarro. Sou James Gan<strong>do</strong>lfini e posso me transformar em Jack Radclifde um instante para o outro se desejar. Eu, James e Jack. Jack é um homem quaseperfeito na opinião de vários conheci<strong>do</strong>s meus. A salvação, para mim, é oquase. Não gosto de perfeições. Na<strong>da</strong> mais pobre no mun<strong>do</strong> como algo perfeitinho,guar<strong>da</strong><strong>do</strong> numa caixinha de cristal para to<strong>do</strong>s apreciarem e serem alerta<strong>do</strong>sde que não é permiti<strong>do</strong> tocar, avançar a linha amarela ou fotografar. Pff! Dequalquer mo<strong>do</strong>, viro-me em direção ao homem árabe. Ele pode se chamar Kalil,Lázaro ou Marcelo. Viro-me. Viro minha cabeça e corpo, esbarran<strong>do</strong> levementeo joelho em sua cintura, projetan<strong>do</strong> minha vista para além dele, para fora <strong>do</strong>Caneca de Prata. Estou suan<strong>do</strong>. Permaneço nessa posição alguns segun<strong>do</strong>s, esperan<strong>do</strong>.Ele não se move, o rosto volta<strong>do</strong> para o maldito espelho que refleteoutro espelho na parede atrás de nós. Esquadrinha-me. Ri de mim. Posso jurar,mesmo sem ver. Finjo esperar alguém, encaro o relógio e volto para a posiçãoanterior, a cara enfia<strong>da</strong> no balcão, sonhan<strong>do</strong> com a morte. Fim <strong>do</strong> tango. Silêncio.Suspense. Uma nova música se inicia. Ele se volta para mim. Toca One, <strong>do</strong> U2.Eu o espio pelo espelho-parede, desenho fragmenta<strong>do</strong> entre rótulos e vidroscolori<strong>do</strong>s de bebi<strong>da</strong>s. É o momento de falar “oi, eu me chamo James Gan<strong>do</strong>lfini”.Reconheço a voz de Bono e balanço a cabeça no ritmo <strong>do</strong> som. Ele espera umsinal, uma palavra, um gesto meu. Está de frente para mim. Esperan<strong>do</strong>. Eu despenco.Adio. Faço-me prisioneiro. O pior: capaz de perceber to<strong>da</strong> a <strong>do</strong>çura existentenesse homem, sentir seu perfume mescla<strong>do</strong> ao sabor tenro de um bomcharuto. Anoitece em mim. Estamos eu e o árabe juntos. Recor<strong>do</strong> a cena de umfilme, uma página li<strong>da</strong> em solidão. Milhões de livros despencam em minha cabeça.Um passeio de carruagem. O veneno e a palidez de um jovem casal. Vivoneles e eles em mim. Lanço meu apelo, meu pedi<strong>do</strong> de socorro, cego sobre osarranha-céus. E não adiantam as telenovelas nos horários nobres, meu coraçãomachuca<strong>do</strong> navega numa caneca gela<strong>da</strong> de chope. Se eu falasse, talvez seguíssemospor um caminho conheci<strong>do</strong>, seguro. Nós brin<strong>da</strong>ríamos sorridentes à madruga<strong>da</strong>.Nossas palavras se emen<strong>da</strong>riam, completan<strong>do</strong>-nos. Quan<strong>do</strong> estivéssemosbem bêba<strong>do</strong>s, pagaríamos a conta, acenaríamos para a pequena imitação<strong>do</strong> David de Michelangelo na estante e avançaríamos São Paulo adentro no meuvelho carro pratea<strong>do</strong>. Eu mostraria a ele minha casa, as fotos premia<strong>da</strong>s numaexposição, minha banheira. E, antes <strong>do</strong> amor, eu secaria suas costas com toalhasfelpu<strong>da</strong>s, exibin<strong>do</strong> to<strong>da</strong> a minha calma e tranquili<strong>da</strong>de. Depois, diria ao meuhomem árabe que foi tu<strong>do</strong> muito mais <strong>do</strong> que uma boa fo<strong>da</strong>. Ele juraria umamor mistura<strong>do</strong> a choro e bebedeira. Eu acreditaria. Eu quero acreditar. Dividiríamosnossas horas entre filmes em preto e branco e beijos intermináveis. Seria84

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