Dossiê Jorge Amado - Academia Brasileira de Letras
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<strong>Jorge</strong> <strong>Amado</strong> e a invenção do Brasil<br />
O romance é um gênero comparativamente novo e periodicamente <strong>de</strong>clarado<br />
morto. Há também quem diga, num dos equívocos mais pobres <strong>de</strong> espírito<br />
em que se po<strong>de</strong> incorrer, que não lê romances porque não <strong>de</strong>seja per<strong>de</strong>r tempo,<br />
prefere a realida<strong>de</strong>. Como se a reportagem mais fria fosse imune ao olho<br />
e ao sentimento do repórter, como se a mesma cena, observada por pessoas<br />
diversas, não fosse <strong>de</strong>scrita em versões às vezes até opostas, como se houvesse,<br />
enfim, uma divisão entre sujeito e objeto que justificasse a pretensão à objetivida<strong>de</strong>,<br />
como se houvesse uma realida<strong>de</strong> incontestável.<br />
Prisioneiros dos cinco sentidos, imersos no tempo – que fora <strong>de</strong> nós é<br />
inexistente –, há muito sabemos que as exigências do método científico lhe<br />
tornam impossível a abordagem <strong>de</strong> toda a nossa realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> que a nossa<br />
consciência é também parte. Os homens perseguem essa abordagem <strong>de</strong> várias<br />
formas, notadamente a Arte. A Arte é uma forma <strong>de</strong> conhecimento, <strong>de</strong> comunicação<br />
entre consciências e terá sempre um canto misterioso e inexplicável.<br />
Se um dia conseguíssemos <strong>de</strong>cifrá-lo e explicá-lo, já não precisaríamos da<br />
Arte, mas creio que isso nunca acontecerá.<br />
Além disso, o romance preenche necessida<strong>de</strong>s humanas sobre as quais creio<br />
que se po<strong>de</strong> apenas especular. Por que toda coletivida<strong>de</strong> sempre teve contadores<br />
<strong>de</strong> história? Por que, em tantas <strong>de</strong>las, mentirosos fantasiosos – condição<br />
talvez aplicável a muitos romancistas – têm a atenção e a <strong>de</strong>ferência da coletivida<strong>de</strong>?<br />
Por que Homero percorria a Héla<strong>de</strong> recitando suas histórias? Por<br />
que tanta gente passava dias inteiros no Teatro Globe, para ver as histórias <strong>de</strong><br />
Shakespeare? Por que o público se amontoava em portos americanos, para ler<br />
o capítulo mais recente <strong>de</strong> um folhetim <strong>de</strong> Dickens?<br />
É evi<strong>de</strong>nte que não tenho as respostas, mas é óbvio o “buraco da fechadura”<br />
<strong>de</strong> que falou Henry James, é clara a ânsia <strong>de</strong> partilhar o mundo e a consciência<br />
e é também óbvia a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trama, <strong>de</strong> enredo, sem o qual o romance<br />
até já tentou passar, mas fracassou ingloriamente na tentativa. A vida, como<br />
lembra alguém todos os dias, é mais estranha que a ficção. Talvez conforte o<br />
homem encontrar um sentido, se não na vida, numa representação <strong>de</strong>la.<br />
Devo, mais uma vez, dar crédito a Darcy por haver acrescentado que <strong>Jorge</strong><br />
<strong>de</strong>sempenhou papel importante até mesmo na criação <strong>de</strong> estereótipos do<br />
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