Iracema, mon amour - Cabine Cultural
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7º Dia – Nas alturas, o sertão também vai virar mar<br />
La Paz/Copacabana, 03/01/05.<br />
Bem cedo acordamos, ou muy temprano, como dizem, 7h30 e já estávamos<br />
na rodoviária. Grande vacilo. Descobrimos que os ônibus para Copacabana saíam<br />
todos do cemitério. Outro táxi para lá. O bumba era uma carroça, uma jardineira<br />
velha que carregava as malas na parte de cima, expostas à garoa que caía de<br />
manhã. Comprei um exemplar do La Razón para ler durante a viagem. Assusteime<br />
com o conteúdo conservador do jornal. Direitista ao extremo, fascista mesmo.<br />
Um artigo assinado por sujeito o qual não faço questão de lembrar-lhe o nome<br />
defendia o uso das forças armadas contra o MST boliviano. Dizia que só o exército<br />
era capaz de conter os “animais irracionais” que invadiam as propriedades<br />
privadas. Nem de relance o artigo mencionava as palavras “reforma agrária”, ou<br />
“igualdade”. Já em um subeditorial, portanto a opinião do jornal, o texto defendia o<br />
facínora chileno chamado Augusto Pinochet. Os argumentos eram rasteiros, dizia<br />
que a operação ”Condor” acabara de descobrir milhões de dólares surrupiados do<br />
povo chileno em contas americanas do Pinochet e de pessoas muito próximas a<br />
ele. Dizia que a corrupção poderia ser aceitável (!), uma vez que Pinochet<br />
equilibrou as contas chilenas e alçou o Chile “para a modernidade”. Não<br />
mencionava os milhares de mortos assassinados pelo regime ditatorial. Deixei o<br />
libelo fascista de lado e, indignado, resolvi distrair-me com a estrada. No início a<br />
paisagem era bem parecida com a que pegamos no dia anterior, no caminho para<br />
Tiwanaku. Contudo, quanto mais nos aproximávamos do Titicaca, mais<br />
interessante ficava. Mais verde, mais árvores, mais agradável. Nem era tão longe,<br />
apenas 168 km, mas o ônibus velho, as estradas sinuosas e as muitas paradas<br />
esticaram nossa viagem para mais de quatro horas. Paramos no Estreito de Tikina<br />
e descemos do busão. Iríamos cruzar de barco, enquanto o ônibus cruzaria de<br />
balsa. O lago Titicaca é belíssimo. Imaginar um lago gigantesco é até fácil, mas<br />
imaginar um lago entre <strong>mon</strong>tanhas e a mais de 3.800 metros de altura, é bem<br />
improvável. Uma visão única.<br />
Depois de novamente pongar no busão, tínhamos ainda que atravessar um<br />
mar de morros e <strong>mon</strong>tanhas; algo como cruzar a arrebentação em dia de águas<br />
traiçoeiras e ondas imprevisíveis. Muitas curvas perigosíssimas, desfiladeiros<br />
mortais e nós num ônibus mais velho que a Dercy Gonçalves. Adrenalina mesmo.<br />
O caminho é tão arriscado que o povo de Copacabana benze seus carros em um<br />
ritual muito colorido que pudermos acompanhar na cidade. E é claro, cruzes<br />
decoram toda a extensão da estrada. Quando, logo na entrada da cidade, eu vi<br />
uma placa dizendo que o asfalto era de 1997, fiquei imaginando como seria a<br />
mesma viagem feita em estrada de terra. Um verdadeiro rali nas alturas. Chegar a<br />
Copacabana é algo belíssimo, maravilhoso, indescritível. As <strong>mon</strong>tanhas cobertas<br />
por uma vegetação de vários tons de verde, a cidade de veraneio vista de cima, o<br />
lago Titicaca banhando os costados, as nuvens baixas; tudo parece se encaixar<br />
perfeitamente, uma har<strong>mon</strong>ia renascentista. Faltou apenas uma moldura.<br />
Arrumamos um hotel legal, melhor e mais barato que em La Paz. Mortos de<br />
fome, nós fomos comer um prato típico, trutas. Acompanhado de cerveja, é claro.<br />
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