Iracema, mon amour - Cabine Cultural
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18º Dia – Alto preço da honestidade<br />
Arequipa/Desaguadero/Guaqui/La Paz, 14/01/05.<br />
Por volta das 4h00 da madrugada nós chegamos em Desaguadero. Poderia<br />
ser mais tarde, ou mais cedo, tanto faz, o frio que fazia não teria mudado muito.<br />
Nem nossa disposição. Subimos novamente os Andes e o frio voltou com toda<br />
força. Dessa vez acompanhado de um vento cortante, afiado como uma navalha,<br />
e de uma gélida chuva, bem fininha. Desaguadero fica bem na fronteira, a poucos<br />
metros adiante podíamos ver a ponte que cruzava para Guaqui, já na Bolívia. Nem<br />
vimos direito as cidades, que aparentemente eram também muito pobres e não<br />
apresentavam atributos que chamassem atenção. A pobreza em certos locais é<br />
tão brutal que chega a parecer um castigo perpétuo; é como se fosse endêmica.<br />
Saímos do Peru sem problemas, com os oficiais apenas olhando nossos<br />
passaportes e nossos cartões de saída, sem carimbar nada, ou trocar uma palavra<br />
sequer. Eles também estavam com muito frio e visivelmente sonolentos. Entramos<br />
na Bolívia também sem maiores percalços. Os guardas da fronteira deram uma<br />
olhadela rápida em nossos documentos e nos deixaram passar. Perguntamos pela<br />
Migración. Responderam que estava fechada e abriria somente às 9h00. Nem<br />
cogitamos a hipótese de esperar a Migración abrir. Poderíamos carimbar nossos<br />
passaportes em La Paz.<br />
Montamos numa van lotada e fedorenta. Dentro de mais ou menos duas<br />
horas passando frio, cansados e famintos, estaríamos em La Paz. Pisquei duro e<br />
apaguei em muitos trechos. Chegamos em La Paz e ficamos no mesmo hotel que<br />
já conhecíamos. Eram mais de 7h00 quando eu caí na cama e, em oito segundos,<br />
já estava praticamente em estado vegetativo. Foi praticamente um coma, dormi e<br />
acordei na mesma posição, sem sonhar e sem sobressalto algum. Esquecemos<br />
que havíamos perdido uma hora ao cruzar a fronteira, pois o fuso boliviano é uma<br />
hora a mais que no Peru. Nosso relógio marcava 10h00, mas descobrimos depois<br />
que já eram 11h00. Saímos, trocamos uma grana, tomamos café e fomos para a<br />
Migración carimbar nossos passaportes. Tentar fazer as coisas direito muitas<br />
vezes é mais custoso. Os honestos quase sempre pagam mais caro. Sei que esta<br />
última frase parece e soa como um ranço de moral pequeno-burguesa duvidosa,<br />
como num contexto niilista onde só os trapaceiros são vencedores. Ou pior,<br />
prolongando a mesma linha de raciocino sofista, poderíamos afirmar já que nada e<br />
ninguém se salvam, tudo está permitido. É a lei do salve-se quem puder, se é que<br />
podemos chamar um preceito tão socialmente destrutivo de lei. Se eu tivesse<br />
ignorado as leis e as autoridades bolivianas na mesma medida que elas me<br />
ignoraram, nada teria acontecido. Toda a divagação foi para dizer que eu me<br />
arrependi de tentar o procedimento virtuoso, legalmente falando. Enfim,<br />
prossigamos.<br />
Um bosta de um funcionário público, todo engomadinho em seu terno mal<br />
cortado, reteve nossos passaportes. Pois é, perdemos na Bolívia nossos únicos e<br />
vitais documentos. O merdinha não aparentava mais que 30 anos. Disse-nos que<br />
havíamos invadido ilegalmente o território boliviano, furando a fronteira e<br />
ignorando as austeras leis do tão nobre país. Explicamos longa e calmamente a<br />
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