O uso <strong>de</strong> drogas na infância e na adolescência em situação <strong>de</strong> rua nas capitais brasileiras...............................31...............................Tabela 5: Ativida<strong>de</strong>s diárias das 2.807 crianças e adolescentes entrevistados nas 27capitais brasileiras, analisados separadamente <strong>de</strong> acordo com o vínculo familiar.1Moracom famíliaNão moracom famíliaN = 1.932 N = 875N % N %Ativida<strong>de</strong>s Anda pelas ruas 997 51,7 665 75,7gerais Brinca<strong>de</strong>ira, diversão 1293 67,1 361 41,1Ativida<strong>de</strong>s Vai à igreja 325 16,9 69 7,8mais Curso profissionalizante 344 17,8 107 12,2específicasEstuda em escola regular 1194 61,9 117 13,3Esporte/dança com professor 752 39,0 245 27,9Ativida<strong>de</strong>s Produz coisas para ven<strong>de</strong>r 101 5,2 34 3,9produtivas Ven<strong>de</strong> objetos, alimentos 495 25,7 120 13,7Serviços gerais 1 734 38,1 417 47,4Ativida<strong>de</strong>s Furta, rouba 158 8,2 323 36,7ilícitas Entrega, ven<strong>de</strong> drogas 32 1,7 65 7,4Transa por dinheiro 37 1,9 76 8,6Uso ilegal <strong>de</strong> drogas (uso diário) 2 212 11,0 435 49,5Outras Pe<strong>de</strong> dinheiro 493 25,6 513 58,4Viaja para cida<strong>de</strong>s próximas 51 2,6 81 9,2Vigia carros, engraxa sapatos, limpa pára-brisa <strong>de</strong> carros, malabarismo, distribui panfletos.Uso ilegal <strong>de</strong> drogas (uso diário): usa diariamente alguma droga ilegal (maconha, cocaína,entre outras) ou obtida <strong>de</strong> forma clan<strong>de</strong>stina (solventes e medicamentos psicotrópicos).2(esporte, dança, cursos profissionalizantes e freqüentar igreja) e algumas ativida<strong>de</strong>sprodutivas (manufatura e venda <strong>de</strong> objetos ou alimentos). Por outrolado, os que relataram não morar com família apresentaram maior freqüência<strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s inespecíficas (andar pela rua, ir para cida<strong>de</strong>s próximas), e, parao sustento, predominou serviços gerais (vigiar carros, limpar pára-brisa, malabarismo,entre outros), pedir dinheiro (esmola) e ativida<strong>de</strong>s ilegais (furto,roubo, tráfico <strong>de</strong> drogas, prostituição). O uso clan<strong>de</strong>stino <strong>de</strong> drogas (solventes,maconha, cocaína e medicamentos psicotrópicos) também foi mais freqüenteno grupo que consi<strong>de</strong>rou não morar com sua família.Esses dados indicam que a classificação das situações <strong>de</strong> rua, ainda queestabelecida com um único critério subjetivo (morar com família), permiteverificar diferenças importantes. Cada contexto vem associado a maior oumenor possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s ilegais, inclusive do consumo <strong>de</strong> drogas (ilegaisou controladas). Essa associação também tem sido observada em outrosestudos (Forster et al., 1996).Para este levantamento, essa associação é um aspecto a ser pon<strong>de</strong>rado nascomparações <strong>de</strong> consumo <strong>de</strong> psicotrópicos entre as capitais, uma vez que houvediferenças importantes do perfil dos entrevistados em cada uma <strong>de</strong>las. EmSão Paulo, por exemplo, praticamente todos os entrevistados não estavammorando com suas famílias nem estudando. Diferentemente, em Belém, Palmas,Macapá e Rio Branco, cerca <strong>de</strong> 80% moravam com suas famílias e maisda meta<strong>de</strong> freqüentava escola...........................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................
...............................32...............................Capítulo 1O uso <strong>de</strong> drogas nas trajetórias da ruaUm dia, as crianças <strong>de</strong> rua vão sedar conta do pesa<strong>de</strong>lo que estão vivendona real e vão acordar pravaler. Imagine o que vai acontecerquando essas crianças pararem <strong>de</strong>usar drogas para cair fora e resolveremlutar <strong>de</strong> fato contra essasinjustiças que estão por aí. Vão viraro mundo pelo avesso.– Bem que o mundo está precisando<strong>de</strong>ssa virada.Lídia Aratangy, 1991,em Doces Venenos..................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................Apesar da diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trajetórias <strong>de</strong> situação <strong>de</strong> rua e dos diferentes históricos<strong>de</strong> uso <strong>de</strong> psicotrópicos, o início do consumo parece ter alguns aspectoscomuns para vários dos entrevistados. Para a maioria, o primeiro episódio <strong>de</strong>consumo <strong>de</strong> bebidas alcoólicas e <strong>de</strong> tabaco ocorreu antes da situação <strong>de</strong> rua(Tabela 6). Em relação às <strong>de</strong>mais drogas, na maioria dos casos, o primeiroepisódio ocorreu <strong>de</strong>pois, com o uso <strong>de</strong> algum solvente e/ou maconha. Esseperfil foi o predominante nas diferentes capitais.Quando questionados sobre os motivos atribuídos ao primeiro episódio <strong>de</strong>uso <strong>de</strong> drogas ilícitas (ou controladas), as respostas recaíram sobre a curiosida<strong>de</strong>e a influência do grupo (Tabela 6). O uso <strong>de</strong> psicotrópicos faz parte da“i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>” <strong>de</strong> alguns grupos e, possivelmente, o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> se integrar aosmesmos seja um dos aspectos mais evi<strong>de</strong>ntes no exato momento da <strong>de</strong>cisão.Mas isso não significa que seja o mais relevante, pois a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> usar (ounão) emerge da interação <strong>de</strong> vários outros fatores complexos e menos perceptíveis,como a fragilida<strong>de</strong> da situação <strong>de</strong> rua, o vínculo familiar, os limites, osmedos, as expectativas e o fascínio pelos <strong>de</strong>safios.Além disso, o abuso <strong>de</strong> psicotrópicos em situação <strong>de</strong> rua vai muito além docontexto <strong>de</strong> início. Dentro <strong>de</strong> uma perspectiva mais global, a inserção do uso<strong>de</strong>ssas substâncias (lícitas e ilícitas) envolve inúmeros fatores psicossociais emassociação como as funções e os significados atribuídos ao uso (Tabela 6). Aalteração da percepção da realida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> adquirir um caráter lúdico, com avivência <strong>de</strong> momentos mágicos, sensações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e/ou euforia. Ao aliviar oenfrentamento da realida<strong>de</strong>, o uso <strong>de</strong> drogas também po<strong>de</strong> representar umaforma paradoxal <strong>de</strong> preservação mental. Essas funções se somam ao potencialreforçador das drogas. Nos casos <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência, constatam-se outros motivoscomo, por exemplo, a fissura e o mal-estar da abstinência. Por outro lado,para alguns casos, também <strong>de</strong>ve ser pon<strong>de</strong>rada a ausência <strong>de</strong> motivos paranão usar. “Freios” como vínculos familiares, religião, preceitos morais e planejamento<strong>de</strong> vida, tidos como importantes para muitos jovens não-usuários,nem sempre fazem sentido para os que estão em situação <strong>de</strong> rua. Nessa interação<strong>de</strong> fatores, o consumo <strong>de</strong> drogas passa a fazer parte do estilo <strong>de</strong> vida <strong>de</strong>muitos grupos, observado ao longo das gerações <strong>de</strong> crianças e adolescentes emsituação <strong>de</strong> rua, nas diferentes regiões do mundo (Lucchini, 1991; Forster etal., 1992; Noto et al., 1997; MacLean et al., 1999).Dentro <strong>de</strong> uma perspectiva macrossocial, o consumo <strong>de</strong> drogas entre essapopulação po<strong>de</strong> ser encarado como um comportamento que <strong>de</strong>nuncia as condiçõesque favorecem a situação <strong>de</strong> rua. Entram em questão todos os fatoressociais estruturais anteriormente mencionados, como a pobreza, as condiçõesda família, da educação, entre outros.É importante pon<strong>de</strong>rar também que existem diferentes graus <strong>de</strong> vinculaçãocom a droga. Apesar <strong>de</strong> muitos <strong>de</strong>senvolverem uso freqüente, alguns mantêmuso eventual e outros sequer vão além do uso experimental. Ainda existemaqueles que, apesar <strong>de</strong> viverem em situações consi<strong>de</strong>radas <strong>de</strong> risco, não chegama usar qualquer droga ilícita. Além disso, a relação com a droga é dinâmi-