12.04.2013 Views

Formar Leitores para Ler o Mundo - Leitura Gulbenkian - Fundação ...

Formar Leitores para Ler o Mundo - Leitura Gulbenkian - Fundação ...

Formar Leitores para Ler o Mundo - Leitura Gulbenkian - Fundação ...

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

192<br />

EDUARDO MARÇAL GRILO*<br />

O que é que está a fazer um engenheiro mecânico no meio dos filósofos,<br />

a falar sobre a leitura?<br />

Quando me convidaram <strong>para</strong> este painel, eu perguntei ao Dr. António<br />

Prole: «O que é que quer que eu diga? Qual é o objectivo?» E a resposta foi<br />

esta: «Eu sei que você lê e, portanto, gostava que falasse sobre a sua<br />

experiência como leitor.»<br />

Eu não sei bem se sou um leitor. Tenho hábitos de leitura, leio todos os<br />

dias durante um período extenso, mas não sei se sou um leitor na<br />

verdadeira acepção da palavra. Não sei se obedeço ao cânone do que é um<br />

leitor, se é que há um cânone de leitor. Quando pensei no que havia de<br />

dizer, qual o contributo que eu aqui poderia trazer, pareceu-me que o<br />

melhor seria fazer uma intervenção que fosse muito autêntica, isto é, que<br />

fosse muito eu próprio, com o que leio, por que é que leio, como é que<br />

comecei a ler, o que é que verdadeiramente me motivou <strong>para</strong> ler, o que é<br />

que tenho lido, o que é que tenho aprendido com os livros.<br />

Estou na <strong>Fundação</strong> <strong>Gulbenkian</strong> há vinte e quatro anos, estive quatro anos<br />

fora, portanto, estou aqui há vinte anos, mas nunca abri aqui esta minha<br />

faceta de leitor a não ser nas conversas informais. Vou, então, contar<br />

como comecei a ler.<br />

Eu vivo hoje no mundo dos livros, mas não nasci no mundo dos livros.<br />

Em minha casa, em Castelo Branco, havia relativamente poucos livros. O<br />

meu pai praticamente não lia, tinha uma vida muito assoberbada e não<br />

lia livros com algum significado. Recordo-me de um ou dois livros ao<br />

longo de toda a minha vida. A minha mãe tinha uma enorme preocupação<br />

em que eu lesse. A minha mãe era filha de um professor primário<br />

do final do século XIX, que era um homem culto e tinha uma pequena<br />

biblioteca de quem eu herdei alguns dos livros, que ainda hoje guardo e<br />

que estão em razoável estado. Detesto livros em mau estado, gosto imenso<br />

de ter livros mas sobretudo em bom estado. Mando-os normalmente<br />

restaurar quando não estão em condições.<br />

Há umas pessoas que dizem que começaram a ler umas coisas fantásticas.<br />

Eu comecei a ler as coisas mais normais deste mundo: Emílio Salgari, O<br />

Corsário Negro e Sandokan. Depois, passei obviamente <strong>para</strong> os livros policiais:<br />

li o Ellery Queen, a Agatha Christie, Erle Stanley Gardner, Michael Z.<br />

Lewin, li praticamente toda a colecção Vampiro. Nunca li O Cavaleiro<br />

Andante. Tinha uma aversão total em relação a tudo o que era folhetos,<br />

tudo o que era coisas em folhetins. Tinha um amigo que quando<br />

acabavam as séries do Tintin ou do Black and Mortimer trazia-mos e eu lia<br />

todos seguidos.<br />

* Administrador da <strong>Fundação</strong> Calouste <strong>Gulbenkian</strong>.<br />

193<br />

Quando tinha talvez uns dezasseis anos, tive um professor de filosofia<br />

que era um homem muito culto e que uma vez me disse uma coisa que<br />

eu nunca esqueci – eu tinha a mania dos automóveis e das mecânicas, por<br />

isso é que fui <strong>para</strong> engenheiro mecânico – «Essas coisas da matemática,<br />

da física, tudo isso é muito importante, mas tu tens que ler outras coisas.»<br />

Por essa idade, (sexto ou sétimo ano do liceu, aquilo que é hoje o décimo,<br />

décimo primeiro ano), tinha uma colecção chamada Colecção Miniatura –<br />

eu ainda hoje guardo esses livros – e fui ver o que é que eu li nessa altura.<br />

Li o Somerset Maugham com Um Casamento em Florença, As Férias de Natal,<br />

As Histórias dos Mares do Sul, O Biombo Chinês e O Agente Britânico. Li os três<br />

livros do Albert Camus mais famosos que eram A Peste, O Estrangeiro e O<br />

Exílio e o Reino. Li o Pierre Marc Orlean, com La Bandera. Li A Porta Estreita,<br />

do André Gide. Li O Velho e o Mar como não podia deixar de ser, do<br />

Hemingway. Li O Génio e a Deusa do Aldous Huxley e fiquei com a ideia de<br />

que, <strong>para</strong> além do mundo das engenharias, em que eu pretendia entrar,<br />

havia um outro mundo muito fascinante, que era o mundo da literatura<br />

<strong>para</strong> a qual eu nunca tive qualquer espécie de pre<strong>para</strong>ção. Nunca estudei<br />

literatura, nunca fui verdadeiramente treinado <strong>para</strong> ler. O treino que tive<br />

foi aquele que qualquer estudante do ensino secundário teve nos anos<br />

sessenta.<br />

Hoje verifico, ao fim deste tempo e tendo alguns hábitos de leitura, que<br />

leio por três razões essenciais: leio por prazer, leio por necessidade e leio<br />

por interesse.<br />

Não vou falar do que leio, nem na <strong>Fundação</strong> <strong>Gulbenkian</strong> onde passo<br />

grande parte do dia, nem na área do desporto, que é uma área sobre a<br />

qual também leio muito. Vou falar da área em que eu me movo e que<br />

gosto de fruir, como dizia o José Barata-Moura.<br />

Penso que ler é como andar. É poder viajar no espaço e no tempo e eu<br />

viajo muito no espaço e no tempo, isto é, sou capaz de me mover nos<br />

livros, gosto daquilo que se faz hoje muito que é navegar na Net. Gosto<br />

muito de navegar nos livros, gosto de andar de livro em livro.<br />

O Daniel Pennac, naqueles dez mandamentos que escreveu há uns anos<br />

atrás, no livro Como um Romance diz uma coisa muito interessante sobre<br />

os direitos do leitor: o direito a não ler, a saltar páginas, o direito de não<br />

acabar um livro, o direito de reler, o direito de ler não importa o quê, o<br />

direito de amar os heróis dos romances, o direito de ler não importa onde<br />

e o direito de saltar de livro em livro. Eu acho, que estes são direitos que<br />

nós temos.<br />

Eu não tenho propriamente uma biblioteca, tenho cerca de quatro mil<br />

obras, mas não considero uma biblioteca; tenho livros. Gosto muito de<br />

estar no meio dos livros, tirar um e tirar outro. E Pennac, relativamente<br />

a este debicar do livro, quando fala deste direito, do direito de saltar de<br />

livro em livro, diz uma coisa engraçadíssima, «assim podemos abrir

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!