Formar Leitores para Ler o Mundo - Leitura Gulbenkian - Fundação ...
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EDUARDO MARÇAL GRILO*<br />
O que é que está a fazer um engenheiro mecânico no meio dos filósofos,<br />
a falar sobre a leitura?<br />
Quando me convidaram <strong>para</strong> este painel, eu perguntei ao Dr. António<br />
Prole: «O que é que quer que eu diga? Qual é o objectivo?» E a resposta foi<br />
esta: «Eu sei que você lê e, portanto, gostava que falasse sobre a sua<br />
experiência como leitor.»<br />
Eu não sei bem se sou um leitor. Tenho hábitos de leitura, leio todos os<br />
dias durante um período extenso, mas não sei se sou um leitor na<br />
verdadeira acepção da palavra. Não sei se obedeço ao cânone do que é um<br />
leitor, se é que há um cânone de leitor. Quando pensei no que havia de<br />
dizer, qual o contributo que eu aqui poderia trazer, pareceu-me que o<br />
melhor seria fazer uma intervenção que fosse muito autêntica, isto é, que<br />
fosse muito eu próprio, com o que leio, por que é que leio, como é que<br />
comecei a ler, o que é que verdadeiramente me motivou <strong>para</strong> ler, o que é<br />
que tenho lido, o que é que tenho aprendido com os livros.<br />
Estou na <strong>Fundação</strong> <strong>Gulbenkian</strong> há vinte e quatro anos, estive quatro anos<br />
fora, portanto, estou aqui há vinte anos, mas nunca abri aqui esta minha<br />
faceta de leitor a não ser nas conversas informais. Vou, então, contar<br />
como comecei a ler.<br />
Eu vivo hoje no mundo dos livros, mas não nasci no mundo dos livros.<br />
Em minha casa, em Castelo Branco, havia relativamente poucos livros. O<br />
meu pai praticamente não lia, tinha uma vida muito assoberbada e não<br />
lia livros com algum significado. Recordo-me de um ou dois livros ao<br />
longo de toda a minha vida. A minha mãe tinha uma enorme preocupação<br />
em que eu lesse. A minha mãe era filha de um professor primário<br />
do final do século XIX, que era um homem culto e tinha uma pequena<br />
biblioteca de quem eu herdei alguns dos livros, que ainda hoje guardo e<br />
que estão em razoável estado. Detesto livros em mau estado, gosto imenso<br />
de ter livros mas sobretudo em bom estado. Mando-os normalmente<br />
restaurar quando não estão em condições.<br />
Há umas pessoas que dizem que começaram a ler umas coisas fantásticas.<br />
Eu comecei a ler as coisas mais normais deste mundo: Emílio Salgari, O<br />
Corsário Negro e Sandokan. Depois, passei obviamente <strong>para</strong> os livros policiais:<br />
li o Ellery Queen, a Agatha Christie, Erle Stanley Gardner, Michael Z.<br />
Lewin, li praticamente toda a colecção Vampiro. Nunca li O Cavaleiro<br />
Andante. Tinha uma aversão total em relação a tudo o que era folhetos,<br />
tudo o que era coisas em folhetins. Tinha um amigo que quando<br />
acabavam as séries do Tintin ou do Black and Mortimer trazia-mos e eu lia<br />
todos seguidos.<br />
* Administrador da <strong>Fundação</strong> Calouste <strong>Gulbenkian</strong>.<br />
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Quando tinha talvez uns dezasseis anos, tive um professor de filosofia<br />
que era um homem muito culto e que uma vez me disse uma coisa que<br />
eu nunca esqueci – eu tinha a mania dos automóveis e das mecânicas, por<br />
isso é que fui <strong>para</strong> engenheiro mecânico – «Essas coisas da matemática,<br />
da física, tudo isso é muito importante, mas tu tens que ler outras coisas.»<br />
Por essa idade, (sexto ou sétimo ano do liceu, aquilo que é hoje o décimo,<br />
décimo primeiro ano), tinha uma colecção chamada Colecção Miniatura –<br />
eu ainda hoje guardo esses livros – e fui ver o que é que eu li nessa altura.<br />
Li o Somerset Maugham com Um Casamento em Florença, As Férias de Natal,<br />
As Histórias dos Mares do Sul, O Biombo Chinês e O Agente Britânico. Li os três<br />
livros do Albert Camus mais famosos que eram A Peste, O Estrangeiro e O<br />
Exílio e o Reino. Li o Pierre Marc Orlean, com La Bandera. Li A Porta Estreita,<br />
do André Gide. Li O Velho e o Mar como não podia deixar de ser, do<br />
Hemingway. Li O Génio e a Deusa do Aldous Huxley e fiquei com a ideia de<br />
que, <strong>para</strong> além do mundo das engenharias, em que eu pretendia entrar,<br />
havia um outro mundo muito fascinante, que era o mundo da literatura<br />
<strong>para</strong> a qual eu nunca tive qualquer espécie de pre<strong>para</strong>ção. Nunca estudei<br />
literatura, nunca fui verdadeiramente treinado <strong>para</strong> ler. O treino que tive<br />
foi aquele que qualquer estudante do ensino secundário teve nos anos<br />
sessenta.<br />
Hoje verifico, ao fim deste tempo e tendo alguns hábitos de leitura, que<br />
leio por três razões essenciais: leio por prazer, leio por necessidade e leio<br />
por interesse.<br />
Não vou falar do que leio, nem na <strong>Fundação</strong> <strong>Gulbenkian</strong> onde passo<br />
grande parte do dia, nem na área do desporto, que é uma área sobre a<br />
qual também leio muito. Vou falar da área em que eu me movo e que<br />
gosto de fruir, como dizia o José Barata-Moura.<br />
Penso que ler é como andar. É poder viajar no espaço e no tempo e eu<br />
viajo muito no espaço e no tempo, isto é, sou capaz de me mover nos<br />
livros, gosto daquilo que se faz hoje muito que é navegar na Net. Gosto<br />
muito de navegar nos livros, gosto de andar de livro em livro.<br />
O Daniel Pennac, naqueles dez mandamentos que escreveu há uns anos<br />
atrás, no livro Como um Romance diz uma coisa muito interessante sobre<br />
os direitos do leitor: o direito a não ler, a saltar páginas, o direito de não<br />
acabar um livro, o direito de reler, o direito de ler não importa o quê, o<br />
direito de amar os heróis dos romances, o direito de ler não importa onde<br />
e o direito de saltar de livro em livro. Eu acho, que estes são direitos que<br />
nós temos.<br />
Eu não tenho propriamente uma biblioteca, tenho cerca de quatro mil<br />
obras, mas não considero uma biblioteca; tenho livros. Gosto muito de<br />
estar no meio dos livros, tirar um e tirar outro. E Pennac, relativamente<br />
a este debicar do livro, quando fala deste direito, do direito de saltar de<br />
livro em livro, diz uma coisa engraçadíssima, «assim podemos abrir