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Formar Leitores para Ler o Mundo - Leitura Gulbenkian - Fundação ...

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Proust, Shakespeare ou a Correspondance de Raymond Chandler e em qualquer<br />

página, debicar aqui e ali, sem correr o mínimo risco de decepção.<br />

Quando não se tem tempo nem os meios <strong>para</strong> passar uma semana em<br />

Veneza, porquê recusar o direito de lá passar cinco minutos?» Eu acho<br />

que classifica muito bem aquilo que é a fruição que se pode ter dos livros<br />

e aquela ideia que se tem, muitas vezes errada na minha perspectiva, de<br />

que um livro tem que se ler de ponta a ponta – eu normalmente leio os<br />

livros de ponta a ponta, mas também admito que não se leia um livro de<br />

ponta a ponta.<br />

O livro tem uma vantagem enorme sobre muitos outros meios porque<br />

nunca nos maça. Quando nos maça, nós fechamo-lo. E ler é um acto de<br />

liberdade em que a leitura aparece como um acto de criação<br />

permanente. Nós estamos permanentemente a criar qualquer coisa<br />

quando lemos. Há uma citação muito interessante que é feita por<br />

Alberto Manguel quando fala em Petrarca e em Santo Agostinho, que eu<br />

acho muito verdadeira e que ocorre muito comigo: «Aquilo que<br />

Agostinho, na imaginação de Petrarca sugere, é uma nova maneira de<br />

ler, nem usar o livro como apoio <strong>para</strong> o pensamento, nem confiar nele<br />

como se confiaria na autoridade de um sábio, mas tirar dele uma ideia,<br />

uma frase, uma imagem e relacioná-la com uma outra extraída de um<br />

texto distante, preservado na memória, ligando o todo com reflexões<br />

próprias e produzindo, de facto, um novo texto da autoria do próprio<br />

leitor.» Esta ideia de que cada página de um livro nos permite escrever o<br />

nosso próprio livro, com tudo aquilo que nós acumulámos na nossa<br />

memória, de todos os livros que lemos, é um privilégio que nenhum<br />

outro meio nos dá.<br />

É evidente que o acto de ler tem uma maçada em relação, designadamente,<br />

aos grandes competidores do livro, se é que há competidores do<br />

livro. É que ler significa esforço, significa trabalho, significa reflexão, significa<br />

investigação, aumento do conhecimento, ao contrário, da televisão,<br />

que é um meio completamente passivo. Verifiquei este fenómeno<br />

quando estive uma vez particularmente doente e em casa alguns meses,<br />

e não tinha capacidade <strong>para</strong> ler, estava muito cansado e via televisão. Eu<br />

vejo muito pouca televisão, sou capaz de ver uma entrevista ou outra do<br />

António José Teixeira, mas a única coisa que eu vejo verdadeiramente na<br />

televisão são os jogos do Sporting.<br />

Há dois aspectos que eu gostava de referir quanto ao livro e à importância<br />

da leitura, que não é apenas o conhecer o melhor do mundo ou conhecer<br />

melhor os mundos, é conhecermo-nos melhor a nós próprios. Há uma<br />

citação do François Mauriac em que ele diz, «O pouco que sabemos de nós<br />

próprios, é por vezes a personagem dum livro, quem no-lo sugere em voz<br />

baixa.» Julgo que nós aprendemos muito nos livros sobre nós próprios,<br />

porque, muitas vezes, aí encontramos os nossos comportamentos, as<br />

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situações do dia-a-dia, os amigos, os familiares e, sobretudo, a<br />

complexidade do livro na qual nós nos vamos embrenhando e que vamos,<br />

em certa medida, destrinçando com uma e outra ideia que esse livro faz<br />

nascer em nós.<br />

Mas o livro é também, uma aventura, uma aventura permanente, porque<br />

estamos permanentemente a empurrar a barreira que temos na frente,<br />

que não nos deixa ver o resto do mundo. Humberto Eco diz, «Há o hábito<br />

de pensar que se entra numa biblioteca <strong>para</strong> procurar um livro. Não é<br />

verdade. Sim, é por aí que se começa, mas o que na realidade se busca é a<br />

aventura e não o livro.»<br />

O José Barata-Moura deixou aqui uma questão que é muito interessante:<br />

saber como é que melhor se conhece o mundo? Através de que tipo de<br />

livros? Eu tenho umas centenas de livros sobre o período europeu que<br />

medeia entre o final da Primeira Guerra e o final da Segunda Guerra, portanto<br />

entre 1918 e 1945, e leio muito sobre essa temática. Nos últimos<br />

anos li os autores mais significativos: Trevor Roper, Ian Kershaw, Martin<br />

Allen, A.J.P. Taylor, Richard Evans, Martin Gilbert, Alfred Smith, John<br />

Keegan, Marlig Steinert, Churchill e De Gaulle, Richard Overy, Joachim<br />

Fest, Henry Amouroux, etc.<br />

Li depois uma área que gosto muito, a dos Diários. Tenho Diários de<br />

muitas pessoas, uns anónimos, outros mais famosos. Mas o José deixou<br />

aqui uma pergunta, que não a expressou directamente, mas que eu vou<br />

expressar da seguinte forma: não será através da ficção que nós melhor<br />

conhecemos o mundo? Posso dizer-vos que é.<br />

Há um livro absolutamente fascinante, talvez, na minha perspectiva, o<br />

melhor livro que se escreveu sobre o período entre 1941 e 1945, que melhor<br />

caracteriza o que aconteceu na Europa, sobretudo, na Alemanha<br />

nazi, uma ficção chamada Les Bienveillantes, escrito por Jonathan Littell, e<br />

que foi, <strong>para</strong> mim, uma espécie de fecho de todos os livros de história que<br />

eu li relativos ao referido período.<br />

Para se perceber o que a França viveu a seguir à invasão, em 1940,<br />

recomendo vivamente dois pequenos romances publicados num livro<br />

chamado Suites Françaises de Irène Némirovsky, hoje mais conhecida do<br />

que era na altura.<br />

Ou seja, julgo que o José Barata-Moura queria levantar essa questão: que<br />

tipo de livros ou com que tipo de livros ou com que tipo de literatura é<br />

que nós melhor conhecemos os outros, nós próprios e o mundo? Eu sou<br />

capaz de afirmar que não será exclusivamente através do romance de<br />

ficção, mas é sobretudo através do romance de ficção. Aliás, o prof.<br />

Eduardo Lourenço, há pouco tempo, dizia mais ou menos isto: ainda<br />

conhecemos mal, hoje, o período do Estado Novo, porque se escreveram<br />

poucos romances sobre essa época da nossa história.

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