Formar Leitores para Ler o Mundo - Leitura Gulbenkian - Fundação ...
Formar Leitores para Ler o Mundo - Leitura Gulbenkian - Fundação ...
Formar Leitores para Ler o Mundo - Leitura Gulbenkian - Fundação ...
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
194<br />
Proust, Shakespeare ou a Correspondance de Raymond Chandler e em qualquer<br />
página, debicar aqui e ali, sem correr o mínimo risco de decepção.<br />
Quando não se tem tempo nem os meios <strong>para</strong> passar uma semana em<br />
Veneza, porquê recusar o direito de lá passar cinco minutos?» Eu acho<br />
que classifica muito bem aquilo que é a fruição que se pode ter dos livros<br />
e aquela ideia que se tem, muitas vezes errada na minha perspectiva, de<br />
que um livro tem que se ler de ponta a ponta – eu normalmente leio os<br />
livros de ponta a ponta, mas também admito que não se leia um livro de<br />
ponta a ponta.<br />
O livro tem uma vantagem enorme sobre muitos outros meios porque<br />
nunca nos maça. Quando nos maça, nós fechamo-lo. E ler é um acto de<br />
liberdade em que a leitura aparece como um acto de criação<br />
permanente. Nós estamos permanentemente a criar qualquer coisa<br />
quando lemos. Há uma citação muito interessante que é feita por<br />
Alberto Manguel quando fala em Petrarca e em Santo Agostinho, que eu<br />
acho muito verdadeira e que ocorre muito comigo: «Aquilo que<br />
Agostinho, na imaginação de Petrarca sugere, é uma nova maneira de<br />
ler, nem usar o livro como apoio <strong>para</strong> o pensamento, nem confiar nele<br />
como se confiaria na autoridade de um sábio, mas tirar dele uma ideia,<br />
uma frase, uma imagem e relacioná-la com uma outra extraída de um<br />
texto distante, preservado na memória, ligando o todo com reflexões<br />
próprias e produzindo, de facto, um novo texto da autoria do próprio<br />
leitor.» Esta ideia de que cada página de um livro nos permite escrever o<br />
nosso próprio livro, com tudo aquilo que nós acumulámos na nossa<br />
memória, de todos os livros que lemos, é um privilégio que nenhum<br />
outro meio nos dá.<br />
É evidente que o acto de ler tem uma maçada em relação, designadamente,<br />
aos grandes competidores do livro, se é que há competidores do<br />
livro. É que ler significa esforço, significa trabalho, significa reflexão, significa<br />
investigação, aumento do conhecimento, ao contrário, da televisão,<br />
que é um meio completamente passivo. Verifiquei este fenómeno<br />
quando estive uma vez particularmente doente e em casa alguns meses,<br />
e não tinha capacidade <strong>para</strong> ler, estava muito cansado e via televisão. Eu<br />
vejo muito pouca televisão, sou capaz de ver uma entrevista ou outra do<br />
António José Teixeira, mas a única coisa que eu vejo verdadeiramente na<br />
televisão são os jogos do Sporting.<br />
Há dois aspectos que eu gostava de referir quanto ao livro e à importância<br />
da leitura, que não é apenas o conhecer o melhor do mundo ou conhecer<br />
melhor os mundos, é conhecermo-nos melhor a nós próprios. Há uma<br />
citação do François Mauriac em que ele diz, «O pouco que sabemos de nós<br />
próprios, é por vezes a personagem dum livro, quem no-lo sugere em voz<br />
baixa.» Julgo que nós aprendemos muito nos livros sobre nós próprios,<br />
porque, muitas vezes, aí encontramos os nossos comportamentos, as<br />
195<br />
situações do dia-a-dia, os amigos, os familiares e, sobretudo, a<br />
complexidade do livro na qual nós nos vamos embrenhando e que vamos,<br />
em certa medida, destrinçando com uma e outra ideia que esse livro faz<br />
nascer em nós.<br />
Mas o livro é também, uma aventura, uma aventura permanente, porque<br />
estamos permanentemente a empurrar a barreira que temos na frente,<br />
que não nos deixa ver o resto do mundo. Humberto Eco diz, «Há o hábito<br />
de pensar que se entra numa biblioteca <strong>para</strong> procurar um livro. Não é<br />
verdade. Sim, é por aí que se começa, mas o que na realidade se busca é a<br />
aventura e não o livro.»<br />
O José Barata-Moura deixou aqui uma questão que é muito interessante:<br />
saber como é que melhor se conhece o mundo? Através de que tipo de<br />
livros? Eu tenho umas centenas de livros sobre o período europeu que<br />
medeia entre o final da Primeira Guerra e o final da Segunda Guerra, portanto<br />
entre 1918 e 1945, e leio muito sobre essa temática. Nos últimos<br />
anos li os autores mais significativos: Trevor Roper, Ian Kershaw, Martin<br />
Allen, A.J.P. Taylor, Richard Evans, Martin Gilbert, Alfred Smith, John<br />
Keegan, Marlig Steinert, Churchill e De Gaulle, Richard Overy, Joachim<br />
Fest, Henry Amouroux, etc.<br />
Li depois uma área que gosto muito, a dos Diários. Tenho Diários de<br />
muitas pessoas, uns anónimos, outros mais famosos. Mas o José deixou<br />
aqui uma pergunta, que não a expressou directamente, mas que eu vou<br />
expressar da seguinte forma: não será através da ficção que nós melhor<br />
conhecemos o mundo? Posso dizer-vos que é.<br />
Há um livro absolutamente fascinante, talvez, na minha perspectiva, o<br />
melhor livro que se escreveu sobre o período entre 1941 e 1945, que melhor<br />
caracteriza o que aconteceu na Europa, sobretudo, na Alemanha<br />
nazi, uma ficção chamada Les Bienveillantes, escrito por Jonathan Littell, e<br />
que foi, <strong>para</strong> mim, uma espécie de fecho de todos os livros de história que<br />
eu li relativos ao referido período.<br />
Para se perceber o que a França viveu a seguir à invasão, em 1940,<br />
recomendo vivamente dois pequenos romances publicados num livro<br />
chamado Suites Françaises de Irène Némirovsky, hoje mais conhecida do<br />
que era na altura.<br />
Ou seja, julgo que o José Barata-Moura queria levantar essa questão: que<br />
tipo de livros ou com que tipo de livros ou com que tipo de literatura é<br />
que nós melhor conhecemos os outros, nós próprios e o mundo? Eu sou<br />
capaz de afirmar que não será exclusivamente através do romance de<br />
ficção, mas é sobretudo através do romance de ficção. Aliás, o prof.<br />
Eduardo Lourenço, há pouco tempo, dizia mais ou menos isto: ainda<br />
conhecemos mal, hoje, o período do Estado Novo, porque se escreveram<br />
poucos romances sobre essa época da nossa história.