2º Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero - CNPq
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<strong>2º</strong> PRÊMIO CONSTRUINDO A IGUALDADE DE GÊNERO<br />
gente tão amoral exigindo comportamentos puritanos, quando seu atavismo a impele a atos<br />
intrinsecamente consi<strong>de</strong>rados subversivos. Clamo, ora!, que <strong>de</strong>svelem esses preconceitos<br />
incabidos, uma vez que sou forjada no fogo das contradições do meio; me sinto uma das<br />
almas que saiu da caixa aberta por Pandora, e com certeza não sou a esperança. Esperança...<br />
A chamo morte. Ela é a única coisa que conheço que pesa feito pluma, diante da insustentável<br />
passagem pela vida.<br />
O rádio toca músicas alegres. Apregoam a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser feliz - como, on<strong>de</strong>? Ao<br />
redor, um cinturão <strong>de</strong> indiferença mergulhado na discrepância social. Dentro <strong>de</strong> mim, ari<strong>de</strong>z:<br />
<strong>de</strong>sertificada <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> anos como inferior. Minha honra é minha pele, e sei que ela não é <strong>de</strong><br />
anéis – ela vai com os <strong>de</strong>dos... Este tempo corre efêmero, e só o vejo pelo espelho, arrancando<br />
o único orgulho que tenho.<br />
Deixar viver a criança, um outro eu... Vai embora <strong>de</strong> qualquer jeito: pela fome, pela<br />
indiferença, pela morte. Não adianta argumentar que ele po<strong>de</strong> ser feliz: quem vai apresentar<br />
a boa sorte ao meu filho, se eu própria não a conheço? Aqueles que por mim nunca fizeram<br />
nada? O governo, que vira as costas? Os dos condomínios fechados, os artistas, os banqueiros,<br />
os fiscais, cada um continua seu caminho, <strong>de</strong>scrito miúdo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o <strong>de</strong>scobrimento <strong>de</strong>sse país.<br />
Sou aquela ex-escrava, <strong>de</strong>pois a mulata encardida, a menina pobre sem modos, moça negra <strong>de</strong><br />
pouca educação, mulher-da-vida que não teve oportunida<strong>de</strong>. Está óbvio: é sina. Ainda não vi<br />
sinal <strong>de</strong> mudança; o que importa isso aos outros?<br />
Eu não posso acrescentar ao percurso severino outro mambembe; como contribuição ao<br />
espetáculo, já basto eu. Não me iludo: sou mister aos luxos dos barões – sustenho o outro lado<br />
da balança. Penso, portanto, que <strong>de</strong>veriam me ter mais cara (<strong>de</strong>sculpas pelo trocadilho) – que<br />
tola, <strong>de</strong> que forma susteriam os pratos, se me tratassem algo melhor?<br />
Corro o risco <strong>de</strong> morrer: se aborto, pelas dificulda<strong>de</strong>s da recuperação; se sustento, acabo o<br />
ganha-pão. Bem sinto, a <strong>de</strong>sgraça acaba por aqui. Seja feita a vossa vonta<strong>de</strong>.<br />
***<br />
Essas palavras não são pensadas, borbotam sem querer. Eu não tenho como dizê-las: não<br />
me pertencem. Não aos meus <strong>de</strong>dos, não à minha língua, não aos meus passos; meus olhos<br />
escorrem o peso da minha história esquecida – essas palavras são o sal das minhas lágrimas.