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corporalidade: “Você não vê o que está acontecendo? Você sabe o que sou. Sabe que não é natural.<br />
É química.”. A personagem denuncia neste exato momento como a autoconstrução é uma ação<br />
imprescindível na experiência da travestilidade, e para efetuar sua atuação se faz necessário uma<br />
série de formulações, de teor combinatório 102 , e que acabam por revelar um saber muito específico<br />
permeado por práticas corporais, ora reiterativas – pois faz uso de marcadores corporais e dos<br />
cuidados historicamente destinados à identidade feminina -, ora subversiva – tendo em vista que<br />
essas práticas e marcadores corporais essencializados como femininos são recontextualizados em<br />
corpos masculinos.<br />
Ser mulher para nossa conformação cultural não é apenas ter seios salientes, vagina, e<br />
formas arredondadas, mas também trazer para este corpo as assinaturas culturais que o concluem,<br />
para além do biológico, como feminino. Miríades destas práticas foram impostas culturalmente para<br />
fazer da mulher ‘ainda mais mulher’, e são assim insistentemente perseguidas pelas travestis. São<br />
vividos de maneira intensa, e nunca esquecidos, pois o descuido não rima com travestilidade. Elas<br />
valorizam o cuidado como parte intrínseca de suas personalidades.<br />
Fazer as unhas; se manter com poucos pêlos; tratar e cultivar longas madeixas; ‘limpar’<br />
as sobrancelhas para trazer para si os ‘suaves’ traços faciais que deve a mulher possuir para se<br />
distinguir dos ‘fortes’ traços masculinos; acentuar, ‘montar’ e criar ‘beleza’ via arsenal estético e<br />
tecnológico como maquiagem, tinturas de cabelos, cremes das mais infinitas finalidades, fazem<br />
parte do arsenal sacado para os perseguidos cuidados. Indo ainda mais além para a construção<br />
destes corpos, capturam taticamente em alopatias postas (anticoncepcional) os hormônios<br />
femininos, e se valem do silicone industrial, para moldar à viva derme as marcas corporais tomadas<br />
como femininas. Preenchendo angulosamente seios, quadris, nádegas e faces, via este líquido.<br />
Muitas publicações 103 se preocuparam em revelar com detalhes todas essas práticas, o<br />
que também foi feito em minha dissertação, na qual procurei defender a idéia de um saber<br />
alternativo à medicina oficial através da (re) invenção popular dessas técnicas. Contudo as poucas<br />
laudas dadas aqui não me permitem trazer este campo de maneira mais detalhada. E buscando<br />
contribuir com um outro olhar que revela, para além destas práticas, como estes corpos são<br />
colocados em discurso, procuro perceber, através da análise da seção de acompanhantes do jornal,<br />
102 Para Certeau (1994), ao centralizar uma análise nos “modos de proceder da criatividade cotidiana”, é preciso ter<br />
em mente que quando tratamos de cultura popular, ela opera de maneira combinatória e utilitária, se revelando como<br />
“[...] uma maneira de pensar investida numa maneira de agir, uma arte de combinar indissociável de uma arte de<br />
utilizar.”(op. cit: 42)<br />
103 Como vemos em: SILVA, 1993; DENIZART, 1997; BENEDETTI, 2005; PELÚCIO, 2005; 2006.