Questões <strong>da</strong> ficção brasileira no século XXIespaço e tempo para investigar quais teriam sido as reais razões <strong>da</strong> trágicamorte por suicídio de um jovem antropólogo americano entre índiosbrasileiros nos anos 40. O romance irá terminar no coração <strong>da</strong> baleia, nocentro urbano <strong>da</strong> cena trágica contemporânea, a Nova York que fora atingi<strong>da</strong>pelo atentado de 11 de setembro de 2001. A falha trágica, porque inevitável,e o trágico radical, que cerca todo esforço para compreender e reconhecerqualquer identi<strong>da</strong>de (como acontece desde Édipo Rei), estão além <strong>da</strong>sevidências que o realismo poderia apresentar. Não se compreende o mistériodo trágico radical, nem dele se escapa.Mongólia, de 2003, me parece trazer, como já escrevi em outros textos,antes de mais na<strong>da</strong>, a discussão sobre as possibili<strong>da</strong>des do literário, oconflito de vi<strong>da</strong> ou morte entre o documental e o ficcional, trazendo aodebate os perigos do excesso de realismo e os limites não entre literaturae não-literatura – não é exatamente esta a questão –, mas entre imaginaçãoe reali<strong>da</strong>de. Tudo isso, porém, partindo <strong>da</strong> banali<strong>da</strong>de do trágico no cotidiano<strong>da</strong> grande ci<strong>da</strong>de para se perder e se encontrar por entre caminhos tãoindecifráveis como o próprio trágico.Chego assim à última <strong>da</strong>s questões que quero identificar nas múltiplaspossibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> prosa contemporânea, talvez o tema mais evidente na culturaproduzi<strong>da</strong> no Brasil contemporâneo: o <strong>da</strong> violência nas grandes ci<strong>da</strong>des.Se a questão <strong>da</strong> violência, com suas causas e formas de controle, dividegovernos e políticos, põe em cheque as diversas formas de administrar oestado, espalha acusações, deixa a população amedronta<strong>da</strong> e perplexa, atransposição <strong>da</strong> violência urbana para a literatura também não deixa de serpolêmica. Ca<strong>da</strong> vez mais a crítica literária, sobretudo acadêmica, vem seocupando do debate em torno do excesso de realismo utilizado nestasnarrativas, perguntando-se até que ponto o ficcional não seria empobrecidonuma volta a recursos anteriores ao moderno. Volta-se à questão dos limitesente o literário, o jornalístico, o sociológico.Parece-me que aquelas duas questões que apresentei como recorrentesem textos de diferentes dicções se unem aqui. Em torno <strong>da</strong> questão <strong>da</strong>violência aparecem a urgência <strong>da</strong> presentificação e a dominância do trágico,em angústia recorrente, com a inserção do autor contemporâneo nagrande ci<strong>da</strong>de, na metrópole imersa numa reali<strong>da</strong>de temporal de trocastão globais quanto barbaramente desiguais. Na força desse cotidianourbano no qual o espaço toma novas formas no diálogo do cotidiano localde per<strong>da</strong>s e <strong>da</strong>nos com o universo global <strong>da</strong> economia, também apresentificação se faz um sentimento dominante, e o aqui e agora semodifica pelas novas relações de espaços encurtados e de tragici<strong>da</strong>de dotempo. A ci<strong>da</strong>de – real ou imaginária – torna-se, então, o locus deconflitos absolutamente individuais, privados, mas que são também osconflitos públicos que invadem a vi<strong>da</strong> e o comportamento individuais,ameaçam o presente e afastam o futuro, que passa a parecer impossível.É aí, a meu ver, justamente pelo aspecto polêmico tomado pelasdiversas narrativas <strong>da</strong> violência na ci<strong>da</strong>de, que está uma possibili<strong>da</strong>deinovadora no quadro <strong>da</strong> produção literária.Até que ponto o tema <strong>da</strong> violência retoma uma espécie de gostoespalhado pela mídia (no caminho <strong>da</strong> homogeneização imposta pelamídia hegemônica, como assinalado por Jameson), pasteurização que vaidos desenhos japoneses à antes tão sofistica<strong>da</strong> cinematografia francesa?É possível, hoje, discutir a situação política do atual estado do mundosem passar pelo debate sobre a violência, sua reprodução, sua narrativa?Ser político é ser capaz de agir como membro <strong>da</strong> pólis, e é nesteprincípio de intervenção que aparecem as diversas possibili<strong>da</strong>des de setratar <strong>da</strong> violência, na literatura e fora dela.Na relação que o relato <strong>da</strong> violência guar<strong>da</strong> com a vi<strong>da</strong> política <strong>da</strong>ci<strong>da</strong>de, quer me parecer que a diferença fun<strong>da</strong>mental estaria em ser aviolência ofereci<strong>da</strong> como objeto distante, quase um objeto estético, quepodemos observar a salvo, como se os conflitos estivessem sendoapresentados em uma arena, ou serem tão narrados como vividos,trazidos para o espaço político, locus de discussão, de debates, espaçoque passa a ser partilhado por todos: os que se sentiam a salvo nacondição de meros espectadores e os próprios personagens quereivindicam a ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia completa. A este espaço poderíamos chamar nãomais arena, onde se travam combates e também onde se encena o trágicode que nos tornamos, quotidianamente, espectadores, mas ágora, praçapública de assembléias do povo, de trocas religiosas e políticas, numapólis em que, diferentemente <strong>da</strong> própria pólis grega, não houvesseci<strong>da</strong>dãos com diferentes direitos à existência, à sobrevivência, à circulaçãoe à imaginação.Nessa ágora, as novas identi<strong>da</strong>des se afirmam como sujeitos de seusdestinos, de sua história e de sua vi<strong>da</strong> priva<strong>da</strong>, são novos atores de ummundo do trabalho que se desestrutura, arena, são imagináriosatormentados determinando a pólis com sua produção cultural, incluindo112 ~ ~ 6.2 | 2007
Dossiê Debatenela uma literatura de forte cunho urbano, tomando a grande ci<strong>da</strong>de, emsua configuração cotidiana submeti<strong>da</strong> à organização <strong>da</strong> nova ordemmundial, como cenário e tema.A obra pioneira entre nós desse tipo de narrativa/sintoma é Ci<strong>da</strong>de deDeus, de Paulo Lins. Publica<strong>da</strong> em 1997, a obra terá importância não sópor suas próprias quali<strong>da</strong>des, mas, antes de mais na<strong>da</strong>, por um aspectofun<strong>da</strong>cional, apontando para mu<strong>da</strong>nças que estariam a caminho.O romance surgiu legitimado por um de nossos mais importantesscholars, Roberto Schwarz, que, em ensaio publicado na Folha de S.Paulo,saudou o livro como um acontecimento. A novi<strong>da</strong>de do fenômeno, porém, seprovoca um grande texto ensaístico – “Ci<strong>da</strong>de de Deus”, depois republicadoem livro –, revela, de saí<strong>da</strong>, certa perplexi<strong>da</strong>de ou impossibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> críticae evidencia as dificul<strong>da</strong>des que os estudos literários teriam ao tratar de obrascuja origem está na proximi<strong>da</strong>de entre autor e narrador. Como disseFerréz em recente entrevista a um programa de televisão, “morar dentrodo tema é complicado”. Schwarz, para analisar o “catatau”, como diz,utiliza-se de recursos de análise que vão do close reading – “No parágrafode abertura, que é sutil, encontramos as pautas clássicas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> popularbrasileira” – aos instrumentos críticos mais seguros na teoria literária:ponto de vista narrativo, foco <strong>da</strong> ação, estatura <strong>da</strong>s personagens (“A estatura<strong>da</strong>s personagens, conforme o ângulo pelo qual se encarem, formaliza e dáreali<strong>da</strong>de literária à fratura social”).Parece-me que ficam, a partir <strong>da</strong>í, evidentes as dificul<strong>da</strong>des <strong>da</strong> críticaliterária como tal em analisar fenômenos como esse. Evidencia-se aimpossibili<strong>da</strong>de de olhar a obra sem olhar a ci<strong>da</strong>de real, os habitantesreais, preocupação que é importante para o crítico, porém, mais do queisso, o que se evidencia é a importância do inusitado olhar de dentro.E é justamente aí que me parece estar a importância do romance de PauloLins, em contraste, sobretudo, com os limites do filme de mesmo nomerealizado a partir do romance. O filme opta por desterritorializar a narrativa,revelando-se excessivamente sensível à estetização <strong>da</strong> violência de gostohollywoodiano, cometendo o erro de “recortar” o gueto de seu entorno, aci<strong>da</strong>de, toma<strong>da</strong> hoje pelas ameaças do narcotráfico, parte de um paíslatino-americano, no mundo <strong>da</strong> globalização.Talvez, por tudo isso, o romance Ci<strong>da</strong>de de Deus tenha sido o últimomomento em que essa nova expressão literária viu seu prestígio lançado ereferen<strong>da</strong>do pela chama<strong>da</strong> academia. Daí em diante, os outros“fenômenos” não precisaram mais disso para ocupar o espaço queora ocupam.Como o romance Ci<strong>da</strong>de de Deus, volta-se para o local em to<strong>da</strong> asua violência, talvez nele estejam as cenas mais violentas <strong>da</strong> literaturabrasileira. É a subcultura do crime, do arbítrio, do mundo organizado nãomais pelo trabalho, mas, sobretudo, pelo universo infrator donarcotráfico. Surge uma circulari<strong>da</strong>de trágica nessa ci<strong>da</strong>de-gueto dentro<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, comuni<strong>da</strong>de toma<strong>da</strong> pela iminência <strong>da</strong> tragédia que cerca seucotidiano. Paulo Lins, ao pôr em cena a cultura desse espaço <strong>da</strong> Zona Suldo Rio de Janeiro, assumiu uma nova dicção, a dos que, vindos do espaço<strong>da</strong> exclusão, usam sua própria voz ao invés <strong>da</strong> dos tradicionais mediadores,os intelectuais, que, até recentemente, por eles falavam, e marca o iníciode uma nova leva de representações <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de na literatura, fora dela (nocinema, na televisão, no teatro) ou no tênue limite dos textos depoimentos.A Ci<strong>da</strong>de de Deus se sucederão outras obras que pretendem trazer para oerudito campo do literário o universo de parcelas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de que já semanifestavam de maneira expressiva em outras formas de expressãoartística, como a música (principalmente pelo funk, hip-hop e rap) e a<strong>da</strong>nça, com companhias como o Corpo de Dança <strong>da</strong> Maré e a importanteCompanhia Étnica de Dança, do Morro do An<strong>da</strong>raí, e ain<strong>da</strong> no teatro como já sólido grupo Nós do Morro, que existe na Favela do Vidigal há 18 anos.Daí em diante surge a polêmica: excesso de reali<strong>da</strong>de? Apropriação <strong>da</strong>reali<strong>da</strong>de que extrapola o âmbito do literário? É inegável que o filão se mostraperigosamente proveitoso, já que falar <strong>da</strong> violência urbana tornou-se,mercadologicamente, uma boa opção. Além disso, nos vastíssimos espaços<strong>da</strong>s periferias, seja do Rio de Janeiro, São Paulo ou Recife, não faltamconflitos universais ou tragédias míticas que possam render boas histórias.Foi a este perigo que se expuseram autores que vinham construindo umaliteratura pessoal merecedora de certa atenção, como Patrícia Mello, que em1997 publicara O matador, narrativa interessante <strong>da</strong> violência que um jovem<strong>da</strong> periferia paulista expressa. Ao criar, porém, no posterior Inferno, o relatode um jovem traficante <strong>da</strong>s favelas do Rio, a autora termina se perdendo, aobuscar <strong>da</strong>r conta realisticamente de um cotidiano por ela pouco conhecido,repetindo a mesma narrativa do narcotráfico carioca diariamente conta<strong>da</strong>pela mídia.O mesmo acontece a to<strong>da</strong> uma leva de narrativas sobre matadorese frios criminosos em romances, filmes, minisséries, até mesmo no~ 6.2 | 2007~ 113
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