A itinerância dos artistas: a constituição do campo <strong>da</strong>s artes nas ci<strong>da</strong>des-capitais do Brasilo ambiente artístico ganhou mais autonomia, tornou-se independente emrelação ao aparelho de estado, estreitou os vínculos com a universi<strong>da</strong>de edensificou-se, criando na ci<strong>da</strong>de uma cena artística varia<strong>da</strong> e de grande interesse.O fato de centrar a investigação em torno de um conceito-chave –itinerância – permitiu reescrever uma breve história <strong>da</strong> arte no Brasil, porfragmentos, a partir de um desenho sociológico que leva a compreenderformas históricas e arranjos institucionais que se desenham entre aestética e a política.A perspectiva transdisciplinar permitiu uma outra leitura <strong>da</strong> arte, peloviés sócio- histórico, explorando as conexões entre arte e socie<strong>da</strong>de, revelandoorientações teóricas e opções metodológicas fecun<strong>da</strong>s para pesquisasdesta natureza. Tendo em conta a relação entre arte e vi<strong>da</strong> urbana, a artenas ci<strong>da</strong>des-capitais será abor<strong>da</strong><strong>da</strong> por meio <strong>da</strong> identificação <strong>da</strong>s práticassociais específicas, vincula<strong>da</strong>s às condições de possibili<strong>da</strong>de do exercício<strong>da</strong>s profissões artísticas e às escolhas estéticas que ressaltam em ca<strong>da</strong> época.Por meio do recorte histórico-sociológico, foram vistas as primeiras formasde organização dos ofícios a partir <strong>da</strong> quarta déca<strong>da</strong> do século XVI, quandoSalvador torna-se a primeira capital do Brasil, e começa a ser implantadoalgo que poderia se aproximar de um processo civilizador (Elias, 1990).Delineamentos sócio-históricos1. Salvador – 1549- 1763A mesma arma<strong>da</strong>, composta de seis navios – três naus, duas caravelas eum bergantim – que trouxe de Portugal o primeiro governador-geral do Brasil,Tomé de Souza, trouxe também o mestre-de-obras de confiança do Rei, LuísDias, acompanhado de um sobrinho, de um filho bastardo e de mais oumenos cem aju<strong>da</strong>ntes, entre pedreiros, ferreiros, carpinteiros e outros oficiaisartífices. Ele já trazia um plano traçado, bastante retilíneo, com localizaçõesdefini<strong>da</strong>s de edifícios estratégicos, principalmente o palácio, a igreja e asfortalezas. A ci<strong>da</strong>de mais antiga do Brasil foi uma ci<strong>da</strong>de planeja<strong>da</strong>. Umdesenho e uma carta de ordenanças para organizar a vi<strong>da</strong> política e paraviabilizar a exploração <strong>da</strong> colônia. Luis Dias e seus aju<strong>da</strong>ntes, em três anos,sobre os escombros <strong>da</strong> antiga capitania <strong>da</strong> Bahia, ergueram a ci<strong>da</strong>de, nãosem dificul<strong>da</strong>des, devido às torrenciais chuvas que caíram naquela estação.Sabe-se que as primeiras imagens sagra<strong>da</strong>s e mais o necessário parao culto católico vieram nessa mesma arma<strong>da</strong>, sendo, inclusive, a imagemde Nossa Senhora <strong>da</strong> Aju<strong>da</strong> responsável pela construção de uma igreja degrande porte em Salvador. Para abrigar a santa, foi levanta<strong>da</strong> pelas mãosdos jesuítas, dentre eles Manuel <strong>da</strong> Nóbrega, to<strong>da</strong> feita de taipa e cobertade palha, aquela que viria a ser conheci<strong>da</strong> como a Sé de Palha, sede doPrimeiro Bispado do Brasil em 1551 (Albuquerque, 1981). 3Na relação dos habitantes de Salvador, em 1549, não consta nenhumareferência a algum artista ou artesão em especial. A função de artista deveter sido desempenha<strong>da</strong> por muitos marceneiros que dominavam as técnicasdo formão, dos tornos e <strong>da</strong>s goivas, transformando as ricas madeiras doBrasil em objetos exigidos para as várias ocasiões e rituais novos, políticos,religiosos e sociais, que se impunham ao se instalar uma capital paraadministrar to<strong>da</strong> a colônia. As leituras confirmam o florescimento degerações de artistas entre os religiosos. Algumas ordens, como os beneditinose os franciscanos, sendo cultivadoras especiais <strong>da</strong>s artes, integraram-nasa todos os seus ritos.Em todo esse processo, os jesuítas tiveram grande importância; suaação pe<strong>da</strong>gógica era segui<strong>da</strong> por outras ordens e tornou-se mesmo exemplar<strong>da</strong> ambivalência do projeto colonial. Este é portador de uma teologiaintrínseca, permeado por práticas de violência simbólica e táticas de conversãoà fé cristã, e também exemplar do modelo de anexação do continenteamericano ao projeto civilizacional ocidental (Gruzinski, 1988).Ao expulsar os jesuítas do Brasil, o governo alterou bastante a conjunturapolítica e os métodos de transmissão de conhecimentos sobre os ofícios,interrompendo uma experiência e uma tradição pe<strong>da</strong>gógica que durara doisséculos e que serviu de exemplo para a ação pe<strong>da</strong>gógica de outras ordensreligiosas. Estas foram as primeiras instituições a ocuparem-se do ensinoe <strong>da</strong> transmissão de valores e conhecimentos humanísticos, assim comoforam os padres os responsáveis pela deman<strong>da</strong>, quando não os própriosatores, <strong>da</strong> produção artística do período. Havia encomen<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s igrejas ecapelas que se multiplicavam à medi<strong>da</strong> que se multiplicavam as aldeias eas missões. Havia imagens de santos, oratórios e genuflexórios domésticos,desejados e possuídos por pessoas abasta<strong>da</strong>s, assim como imagens dedimensões menores, em geral de fatura anônima e mais rústica, circulandoentre a população com menos recursos. Forma-se um arcabouço de imagense de cultura material próprio desse período de deslocamento e degeneralização do Barroco na América, fenômeno comum a to<strong>da</strong> arte coloniallatinoamericana que mescla códigos eruditos a uma fatura vernacular,resultando em um rico desvio do padrão original do Barroco peninsular. Umconjunto de altares, entalhes, detalhes de esca<strong>da</strong>s e de púlpitos sustentadospor colunas salomônicas onde eram proferidos os intermináveis sermões.84 ~ ~ 6.2 | 2007
Dossiê DebateNo Brasil, o Barroco adquiriu o tom exacerbado, dramático, <strong>da</strong> contrareformae o estilo didático <strong>da</strong> catequese. O estreito elo entre o poder seculare o religioso é visível na exteriori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> arquitetura <strong>da</strong> época, na predominância<strong>da</strong>s igrejas, capelas, conventos, colégios, ao lado de fortalezas e casasfortifica<strong>da</strong>s, edifícios administrativos e outras edificações exigi<strong>da</strong>s para aimplantação de um Governo-Geral, uma instituição centralizadora e forte.A arquitetura, arte maior – e tudo o que está a ela relacionado, comoornamentos, esculturas, pinturas –, é uma superfície privilegia<strong>da</strong> de leitura<strong>da</strong> época colonial e do predomínio de linhas de força – as instituições austeras,a inquisição –, mas também as linhas de fuga como, por exemplo, a emergênciade um Barroco desviante, viajante, nas Américas portuguesa e espanhola.Quais foram as motivações <strong>da</strong> escolha de Salvador para primeira capital?Quais as razões <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça para o Rio de Janeiro em 1763? Como sedesenvolveram as ci<strong>da</strong>des coloniais brasileiras? Comparações com outroscentros urbanos <strong>da</strong> mesma época – como Ouro Preto e Olin<strong>da</strong> – foramreveladores finos <strong>da</strong> regulari<strong>da</strong>de dos trânsitos e <strong>da</strong>s diferenças “regionais”entre as primeiras experiências urbanas no Brasil.Salvador foi fun<strong>da</strong><strong>da</strong> sobre as ruínas de uma capitania que nãoprosperara, como se aprende nos livros didáticos. Seu donatário, FranciscoPereira Coutinho, fora morto por indígenas de Itaparica, e seu herdeirocedera os direitos, mediante indenização, à Coroa portuguesa, que fez <strong>da</strong>Bahia a primeira capitania real do Brasil. A necessi<strong>da</strong>de de ter mais controlesobre a exploração colonial, de <strong>da</strong>r assistência e suporte aos donatários,de estimular a ocupação de áreas vazias, de barrar os invasores estrangeirose de impor o domínio português no Brasil levou d. João III à decisão deinstituir, em 1548, o Governo-Geral, com sede em Salvador, que já possuiauma história desde 1501. Por que Salvador? Contaram para esta localização oacontecimento anteriormente referido, o fato de ter um núcleo de povoamento,a disponibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s terras devolutas, sua fertili<strong>da</strong>de, as condições portuáriasexcelentes, a localização geográfica quase ao centro do litoral povoado eentre duas capitanias prósperas e rentáveis, Pernambuco e Ilhéus.Salvador torna-se, assim, durante mais de dois séculos, a capital doBrasil. Entre 1549 e1650, as obras de arquitetura trazem uma fatura maisrústica e uma função pragmática clara, como as igrejas, capelas e colégios,construções jesuíticas. O número e a imponência desses edifícios sãoreveladores do elo entre arte e religião, reforçado pela instituição dopadroado, que faz dos religiosos funcionários do Estado português 4 .Também reveladores <strong>da</strong>s funções primeiras <strong>da</strong> arquitetura colonial são asbaterias de fortalezas, fortes, baluartes, assim como as casas de câmara ecadeira, os palácios, edifícios necessários à defesa e ao funcionamento <strong>da</strong>burocracia colonial.De 1650 até 1730, instala-se um novo gosto estético, mais exuberante,mais luxuoso, como revelado no convento de São Francisco, em Salvador,com sua facha<strong>da</strong> plateresca, seus painéis azulejares primorosos, que narramcenas e descrevem paisagens dos arredores de Lisboa antes do terremoto.Um terceiro momento pode ser pensado, tendo como corte os anos<strong>da</strong> décade de 1730, quando já se introduz no Barroco do Brasil um novoregime de imagens, outros modelos, como os provindos <strong>da</strong> Europa central,um estilo mais leve, derivando para o rococó, ou então, mais classicizante,colunas mais alonga<strong>da</strong>s, de influência italiana. O ano de 1759, <strong>da</strong>ta <strong>da</strong>expulsão dos jesuítas <strong>da</strong>s colonias pelo marquês de Pombal, marca tambémo início de um regime centralizador e autoritário que predominou nos trêsreinados, de d. João V, de d. José e d. Maria I. O período coincide com odo aparecimento de uma nova geração de ilustrados, educados na Europa,que possuíam um gosto estético refinado, mais contido e sóbrio.Por essa época, início do século XVIII, Salvador havia atingido um ápicede luxo e de riquezas, justamente quando o polo econômico <strong>da</strong> colônia jáse deslocava para o centro-sul, principalmente após a descoberta do ouronas Minas Gerais. Assim, o estudo sobre Salvador levou a textos maisdetalhados sobre o Barroco brasileiro que, por sua vez, revelaram itineráriosempíricos inesperados, como, por exemplo, a descoberta de uma intensarelação entre os centros urbanos que mais possuíam uma deman<strong>da</strong> detrabalho artístico, Salvador, Olin<strong>da</strong>, Rio de Janeiro e, posteriormente, asci<strong>da</strong>des do ciclo do ouro e do diamante em Minas Gerais, ci<strong>da</strong>des entreas quais os artistas viajavam com mais freqüência do que seria imaginávelem um momento em que os deslocamentos ain<strong>da</strong> eram longos e difíceis.Os resultados desse achado historiográfico revelam não a origem de umacivilização ou de um estilo, mas a itinerância, os caminhos percorridospelos personagens anônimos, pelos artistas que mal aparecem na históriaoficial e que são os portadores de saberes técnicos e estéticos até hoje parteimportante do patrimônio cultural brasileiro. Para essa etapa <strong>da</strong> pesquisa foifun<strong>da</strong>mental a produção intelectual dos autores modernistas que promoveramuma reinterpretação do Barroco e <strong>da</strong> arte colonial no Brasil (5). Essesclássicos trazem informações muito fecun<strong>da</strong>s para esta pesquisa, interessa<strong>da</strong>na itinerância, nos fluxos e no deslocamento de artistas e de idéias, comoa já referi<strong>da</strong> descoberta dos deslocamentos concretos de mestres como José~ 6.2 | 2007~ 85
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