Dentro e fora <strong>da</strong> Nova Ordem Mundial: A Negritude de SalvadorA seqüência dos versos, contrastante pela redundância, exibe,desconstruíndo, a monotonia perversa <strong>da</strong>s vozes hegemônicas quedissociam cor e classe na reali<strong>da</strong>de social baiana. Como afirmará amúsica logo a seguir,E não importa se olhos do mundo inteiroPossam estar por um momento voltados para o largoOnde os escravos eram castigadosE hoje um batuque, um batuqueCom a pureza de meninos uniformizadosDe escola secundária em dia de para<strong>da</strong>E a grandeza épica de um povo em formaçãoNos atrai, nos deslumbra e estimulaÉ no contexto <strong>da</strong> discriminação e <strong>da</strong> extrema<strong>da</strong> violência que emergea construção cultural <strong>da</strong> africani<strong>da</strong>de baiana, no permanentemente trânsitoentre a ancestrali<strong>da</strong>de religiosa e matricial, a experiência <strong>da</strong> diáspora e asrepresentações de outras comuni<strong>da</strong>des de afro-descendentes transnacionalmentecaptura<strong>da</strong>s. Este é o “povo em formação”, ao qual não são possíveis(provavelmente sequer desejáveis) a pe<strong>da</strong>gogia própria dos discursosidentitários que deram base ao estado nação. São intervenções performáticase interpelativas cujo alvo principal pode ser compreendido como umaestética <strong>da</strong> existência ou como tecnologias de si, tal como as considerouFoucault 8 , embora partindo de experiências culturais radical e temporalmentediferencia<strong>da</strong>s. Em outra perspectiva, são reconstruções discursivas dopertencimento que têm o poder de “estorvar” – imagem cara a Stuart Hall– o desenho estável <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de nacional imagina<strong>da</strong> tanto quanto ode por em xeque as hierarquias classificatórias firma<strong>da</strong>s pelas políticasculturais do Ocidente.Ain<strong>da</strong> em Caetano Veloso podemos encontrar, em outros momentos,o delineamento do que está em pauta na reelaboração <strong>da</strong>s imagensidentitárias <strong>da</strong> afro-descendência baiana:Preta chique, essa preta é bem lin<strong>da</strong>Essa preta é muito finaEssa preta é to<strong>da</strong> a glória do brauPreta preta, essa preta é corretaEssa preta é mesmo pretaÉ democrata social racialEla é mo<strong>da</strong>lE eu e eu e eu sem elaNobreza brau, nobreza brauTem um Gol que ela mesma comprouCom o dinheiro que juntouEnsinando português no CentralSalvador, isso é só SalvadorSua suja SalvadorE ela nunca furou um sinalIsso é legalE eu e eu e eu sem elaNobreza brau, nobreza brau 9Com a homenagem à negra Candolina, uma famosa professora deportuguês do ensino público em Salvador (ressalte-se que à época - quaseremota - em que este detinha um padrão de quali<strong>da</strong>de superior ao <strong>da</strong>sinstituições de ensino priva<strong>da</strong>s e o “Central” era um exemplo de excelência),o compositor baiano (e mestiço, como quer) delineia a possibili<strong>da</strong>de deinserção e reconhecimento social que chegou a se esboçar para os negromestiçosnum rápido intervalo entre os anos 60 e 70. Foram os efeitos<strong>da</strong>s políticas desenvolvimentistas <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> anterior ou do “milagreeconômico”, e compreendem iniciativas como o início <strong>da</strong> exploração dopetróleo, a instalação de pólos industriais e um relativo crescimento doemprego público na Bahia. A trajetória de Candolina é um significativoexemplo do que se identifica como “áreas moles” (10) nas relações raciaise possibili<strong>da</strong>de de emprego <strong>da</strong> população negra, que incluem o serviçopúblico, principalmente no sistema de educação.Nesse contexto, a homenagea<strong>da</strong> representa a escassa e frágil classemédia negra, que busca se impor através de itens do consumo e posturassocias característicos do segmento. Para os que estão nesta condição, ademocracia racial não significa exatamente um mito hegemônico acerca<strong>da</strong>s relações raciais no Brasil, imposto de cima para baixo, mas sim apossibili<strong>da</strong>de de, dele se apropriando, desenvolver “estratégias individuais78 ~ ~ 6.2 | 2007
Dossiê Debatedestina<strong>da</strong>s a reduzir a desvantagem racial”, como adverte oportunamenteo antropólogo Livio Sansone 11 .A composição, além de evidenciar o entre-lugar <strong>da</strong> afro-baiani<strong>da</strong>deque ascende à classe média, a dupla fideli<strong>da</strong>de sumariza<strong>da</strong> nas referênciasà Europa e ao Senegal ou ain<strong>da</strong> no binômio carnaval e trabalho, articula acena intervalar de prosperi<strong>da</strong>de e prestígio a dois outros elementos maisduradouros no processo de reconstrução dignifica<strong>da</strong> <strong>da</strong> afro-descendência:a valorização <strong>da</strong> aparência física – a afirmação <strong>da</strong> beleza negra – e <strong>da</strong>participação na tradição religiosa ancestral. A preta “bem lin<strong>da</strong>”,Preta sã, ela é filha de IansãEla é muito ci<strong>da</strong>dãEla tem trabalho e tem carnavalElegante, ela é muito eleganteEla é supereleganteRoupa Europa e pixaim Senegal............................................E a ci<strong>da</strong>de, a baía <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>deA porcaria <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>deTem que reverter o quadro atualPra lhe ser igual.Tem <strong>da</strong>ta bem anterior a “Neide Candolina”, entretanto, a composiçãode Caetano Veloso que se tornou emblemática do investimento no resgate<strong>da</strong> auto-estima, no processo de afirmação cultural <strong>da</strong> negritude baiana.Grava<strong>da</strong> no final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 70, “Beleza Pura”, como afirma elepróprio,é uma sau<strong>da</strong>ção ao início <strong>da</strong> 'toma<strong>da</strong>' <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Salvador pelos pretos. Elasempre foi uma ci<strong>da</strong>de com muitos pretos mas, até os anos 70, eles ficavammais ou menos 'nos seus lugares': puxadores de rede, de xaréu, tocadores decandomblé, pescadores, vendedores de acarajé, todos muito nobres, bonitos,mas ca<strong>da</strong> um no seu lugar tradicional. 12Como uma explicitação de sua dissonância na linhagem dos grandescantores <strong>da</strong> baiani<strong>da</strong>de, o depoimento do compositor, por um lado, repõea história do imaginário cultural <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, ou a sucessivi<strong>da</strong>de diferencia<strong>da</strong><strong>da</strong>s imagens de sua negritude, frisando o contraste entre o que homenageiaem seus versos e – impossível não reconhecer – os personagenstrabalhadoresnegros, entre o idílico e o exótico, cantados por DorivalCaymmi (e muitos outros), que atravessaram o Brasil desde as on<strong>da</strong>ssonoras do rádio, nas déca<strong>da</strong>s de 40 e 50 do século passsado. Por outrolado, pode-se considerar o jogo entre a negativa reitera<strong>da</strong> ao longo <strong>da</strong>canção (“Não me amarra dinheiro não”) e o detalhamento <strong>da</strong> “Belezapura” (“A pele escura” e “A carne dura”) como adesão a uma outra linhagemou como retoma<strong>da</strong> diferencial, atualizadora, de aspectos definidores <strong>da</strong> músicapopular brasileira no início do século XX – do samba e <strong>da</strong> malandragem–, pelo retorno <strong>da</strong> insubordinação frente a ética do trabalho, pela reafirmaçãodo ócio e <strong>da</strong> aparência.A carne duraDinheiro nãoMoço lindo do Ba<strong>da</strong>uêBeleza puraDo Ilê AiyêBeleza puraDinheiro yeahBeleza puraDinheiro não...............................Dentro <strong>da</strong>quele turbante dos Filhos de GhandiÉ o que háTudo é chique demaisTudo é muito eleganteMan<strong>da</strong> botarFina palha <strong>da</strong> costa e que tudo se tranceTodos os búziosTodos os óciosSão evidentes, ao mesmo tempo, as diferenças que emergem naretoma<strong>da</strong> (ou neste retorno do recalcado): em vez do morro, <strong>da</strong> estigmatiza<strong>da</strong>favela carioca, <strong>da</strong> efetivi<strong>da</strong>de dos espaços habitados pela pobreza, o altovalor simbólico dos atuais territórios negros <strong>da</strong> Bahia construídos pelos“blocos-afro” (Ba<strong>da</strong>uê, Ilê Ayê e o afoxé Filhos de Ghandi); em vez <strong>da</strong>simulação <strong>da</strong> elegância citadina, ocidentaliza<strong>da</strong> ou branca, a adoção~ 6.2 | 2007~ 79
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