Dentro e fora <strong>da</strong> Nova Ordem Mundial:A Negritude de SalvadorEnei<strong>da</strong> Leal CunhaA pergunta feita por Jesús Martín-Barbero em Al sur de la modeni<strong>da</strong>d,uma análise que articula globalização, comunicação e multiculturali<strong>da</strong>dedo ponto de vista <strong>da</strong> América Latina, é uma boa introdução para oscaminhos e os alvos desta reflexão:Podemos ain<strong>da</strong> pensar a ci<strong>da</strong>de como um todo ou estamos irremediavelmentelimitados a perceber apenas seus fragmentos e a saltar entre eles sem outrapretensão além de reuní-los num jogo de figuras sem referente na reali<strong>da</strong>de? 1Para o autor, a expansão estonteante <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des sul-americanas nosfinais do século XX, fruto do êxodo incessante de populações rurais, produza reconfiguração tanto dos limites físicos e <strong>da</strong>s formas urbanas estáveisquanto, principalmente, do modo como a ci<strong>da</strong>de é vivi<strong>da</strong> e percebi<strong>da</strong> pelosseus habitantes. Essas transformações afetam a sua periferia e o seucentro, pois é geralmente entre esses dois pontos que, seja na Colômbiacontempla<strong>da</strong> por Barbero seja no Brasil, se desloca o segmentopopulacional mais numeroso e mais pobre <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des contemporâneas,afetando-os irremediavelmente. Entretanto, a desespacialização, odescentramento e a desurbanização que resultam, segundo ele, do caosurbano contemporâneo, são regulados hoje pelo que denomina “paradigmacomunicacional” ou “paradigma informacional”, centrado no conceito defluxo, “entendido como tráfico ininterrupto, interconexão transparente ecirculação constante de veículos, pessoas e informações.” 2 As metrópolescontemporâneas ao sul ou ao norte do equador deixaram de ser um espaçoa ser ocupado para transformarem-se em um espaço virtual, abarcávelapenas através dos meios de comunicação, <strong>da</strong>s imagens capta<strong>da</strong>s pelascâmeras, ca<strong>da</strong> vez posiciona<strong>da</strong>s a maior distância, que reproduzem tantoa densi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> circulação em suas aveni<strong>da</strong>s quanto a extensão, sempresurpreendente para os que a habitam, dos enclaves miseráveis <strong>da</strong>sinvasões ou <strong>da</strong>s favelas. Nessas ci<strong>da</strong>des, os corpos já não precisam ou jánão podem ser reunidos, mas sim interconectados pelos media. A dimensãovirtual <strong>da</strong> experiência urbana contemporânea, entretanto, não deve seratribuí<strong>da</strong> exclusivamente à potência dos meios massivos, pois é umacontraface <strong>da</strong> relação débil ou mesmo <strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong>de de relação,de convivência ou de contato entre os habitantes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de no territórioreal, separados que estão pelo medo recíproco e por distâncias sócioeconômicasque crescem na mesma proporção do encolhimento do mundocontemporâneo globalizado. Ou seja, é exclusivamente no plano do simbólicoe do imaginário que a ci<strong>da</strong>de contemporânea pode ser compartilha<strong>da</strong>.Estas reflexões de Martín-Barbero podem abrir vias de compreensãoou fornecer um equacionamento para li<strong>da</strong>rmos com a simultanei<strong>da</strong>de deaspectos antagônicos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Salvador cogitando acerca <strong>da</strong> suainterdependência. Por um lado a sua proeminância, ca<strong>da</strong> vez mais alarga<strong>da</strong>,enquanto lugar de produção de eficazes imagens <strong>da</strong> negritude, <strong>da</strong> brasili<strong>da</strong>deafro-descendente, <strong>da</strong> convivência interrracial. A velha ci<strong>da</strong>de negra e detodos os orixás que Jorge Amado apresentou ao Brasil e ao exterior, nadéca<strong>da</strong> de 30 do século passado, na esteira <strong>da</strong> mestiçagem valoriza<strong>da</strong> porGilberto Freyre, cujo nome próprio (Salvador) é permanentemente rasuradopara deixar entrever a memória <strong>da</strong> baía que sediou a metrópole mercantil,colonial e escravista.No presente, disseminam-se [desta] Bahia para o restante do país, através <strong>da</strong>indústria cultural e dos mídia, os sons, imagens e cores <strong>da</strong> “afro-baiani <strong>da</strong>de”.No modo de designá-la, pode-se ler a fixação, no imaginário social, de traços76 ~ ~ 6.2 | 2007
Dossiê Debateidentitá rios resistentes, que a concebem e reiteram como o centro ancestral,como o lugar natural do acolhimento, do trânsito, <strong>da</strong> troca, <strong>da</strong> mistura. 3Por outro lado, a mesma Salvador é capaz de levar o cientista políticosenegalês Doudou Diène, relator <strong>da</strong> Organização <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s, queesteve na ci<strong>da</strong>de para colher <strong>da</strong>dos sobre discriminação racial, a aproximaro número alarmante de óbitos de jovens negros a uma forma de “limpezaétnica”. Diéne reconhece que, em qualquer parte do mundo, “o racismoeconômico e social se traduz por uma violência do aparelho de Estado, <strong>da</strong>polícia, dos serviços <strong>da</strong> ordem, do perfilamento racial e <strong>da</strong> marginalização.Também há pessoas sendo assassina<strong>da</strong>s, mas o assassinato de jovenscomo vemos aqui [em Salvador] é muito preocupante.” E acrescenta: adiscriminação racial “sempre se traduz por uma violência física, mas não<strong>da</strong> mesma natureza em que encontramos aqui. O extermínio de jovensque são na maioria negros, pobres e que vivem nas favelas e periferias, eunão verifiquei em outros países”. 4A ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia continua interdita<strong>da</strong> aos negros e mestiços que constituema majoritária população de baixa ren<strong>da</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. A contradição flagrantena Bahia – onde os “negromestiços ocupam todo o espaço e quase todoo tempo dos mass media (...) suas manifestações e seus produtos estéticosreinam de forma praticamente absoluta” – recebeu um diagnóstico lúcidodo poeta e antropólogo Antônio Risério quando disse “que, usandolivre mente os conceitos de Gramsci, podemos afirmar tranqüilamente que,na Bahia de hoje (a ci<strong>da</strong>de menos racista e mais racista do Brasil) a culturanegromestiça não é dominante, mas é, certamente, hegemônica” 5 .Mais eloqüente do que a avaliação do cientista social, mesmo quandoperpassa<strong>da</strong> pelos jogos de linguagem, é a imagem visiva e musica<strong>da</strong> quenos oferecem em parceria Caetano Veloso e Gilberto Gil em “Haiti”, construí<strong>da</strong>pela articulação áspera de Ritmo & Poesia e exemplar tanto <strong>da</strong> pulsão escópicaque, segundo Michel Certeau, possibilita a visa<strong>da</strong> panorâmica e uma apreensãosignificativa <strong>da</strong> totali<strong>da</strong>de 6 , quanto <strong>da</strong> mediação a que se refere Barbero:Quando você for convi<strong>da</strong>do pra subir no adroDa Fun<strong>da</strong>ção Casa de Jorge AmadoPra ver do alto a fila de sol<strong>da</strong>dos, quase todos pretosDando porra<strong>da</strong> na nuca de malandros pretosDe ladrões mulatosE outros quase brancosTratados como pretosSó pra mostrar aos outros quase pretos(E são quase todos pretos)E aos quase brancos, pobres como pretosComo é que pretos, pobres e mulatosE quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados 7A densi<strong>da</strong>de simbólica <strong>da</strong> cena e dos versos se constitui <strong>da</strong> combinaçãoentre síntese e redundância. A brevíssima referência espacial (ao adro <strong>da</strong>Fun<strong>da</strong>ção Casa de Jorge Amado, de onde se vê do alto) é plena de evocaçõesduradouras, tanto à construção discursiva <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e à centrali<strong>da</strong>de doespaço que o romancista ocupa, no imaginário e na geografia do seu centrohistórico, quanto à siginificação histórica e presente desse espaço, doLargo do Pelourinho, lugar de punição e sacrifício dos negros escravizadosaté pouco mais de cem anos, foco de concentração dos investimentosatuais na indústria do turismo e espaço simbólico <strong>da</strong> negritude baiana emnossos dias. Ao apresentá-los condensados, faz-se provocativo convite aoconfronto crítico dos elementos que foram justapostos.~ 6.2 | 2007~ 77
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