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STORYTELLER<br />
Blair Fraser/Unsplash<br />
O velho e as velhas<br />
Outro texto me <strong>de</strong>ixou saudoso. Trata-se<br />
<strong>de</strong> um que exalta a profissão <strong>de</strong> publicitário<br />
LuLa Vieira<br />
Quando roubaram meu carro, para me<br />
habilitar a receber o seguro fui à <strong>de</strong>legacia<br />
<strong>de</strong> polícia registrar a ocorrência. O<br />
plantonista, após verificar a documentação,<br />
me perguntou se havia algo <strong>de</strong> valor<br />
“no veículo”. Eu disse: “muito”. E, para espanto<br />
<strong>de</strong>le, <strong>de</strong>talhei: “um volume com 10<br />
números da revista Propaganda da década<br />
<strong>de</strong> 1960, que fazem parte <strong>de</strong> uma coleção”.<br />
O rapaz então escreveu: “revistas antigas<br />
enca<strong>de</strong>rnadas”, me olhando <strong>de</strong> soslaio, como<br />
se fosse uma excentricida<strong>de</strong>, diante do<br />
roubo <strong>de</strong> um carro importado, estar preocupado<br />
com revistas velhas. Dias <strong>de</strong>pois, já<br />
com o dinheiro do seguro quase na minha<br />
conta, recebo um telefonema <strong>de</strong> um <strong>de</strong>spachante<br />
me avisando que acharam o carro.<br />
Minha única pergunta: “tinha um livrão <strong>de</strong><br />
capa marrom com lombada vermelha <strong>de</strong>ntro<br />
do carro?” Diante da resposta negativa,<br />
agra<strong>de</strong>ci, <strong>de</strong>sliguei e avisei a seguradora<br />
que o carro tinha sido encontrado. Não me<br />
interessei mais por nada, pois o que tinha<br />
<strong>de</strong> valor lá <strong>de</strong>ntro, algo que seguradora nenhuma<br />
po<strong>de</strong>ria me <strong>de</strong>volver, sumiu.<br />
E imagino que o ladrão <strong>de</strong>ve ter jogado<br />
fora os 10 números dos primeiros anos da<br />
revista, <strong>de</strong> uma época que eu comecei na<br />
profissão e sonhava em um dia ter meu nome<br />
entre aqueles que escreviam para ela<br />
ou que eram citados em suas matérias. Esse<br />
volume fazia parte <strong>de</strong> uma coleção que<br />
ainda mantenho e muitas vezes folheio,<br />
com sauda<strong>de</strong>s não exatamente daqueles<br />
tempos (embora mereçam), mas muito<br />
mais <strong>de</strong> mim mesmo. Não sou saudosista,<br />
mas tenho muitas sauda<strong>de</strong>s, o que parece<br />
um paradoxo, mas não é. Os números da<br />
revista Propaganda que tenho neste momento<br />
parecem realmente vir <strong>de</strong> um tempo<br />
que já passou há muito. Leio um colunista<br />
reclamando do nível da TV no Brasil.<br />
Um entrevistado fala da prática do BV e há<br />
também um sério <strong>de</strong>bate sobre... o futuro<br />
do rádio. Em outro exemplar, o número 3,<br />
vejo a relação <strong>de</strong> alguns colegas <strong>de</strong> profissão:<br />
Orígenes Lessa, Fernando Sabino, Rubem<br />
Braga, Balsac, Olavo Bilac, Monteiro<br />
Lobato, Fernando Pessoa, Raymundo <strong>de</strong><br />
Menezes, listados num artigo exatamente<br />
sobre os gran<strong>de</strong>s literatos que se <strong>de</strong>dicaram<br />
também a escrever “reclames”.<br />
Um outro texto me <strong>de</strong>ixou particularmente<br />
saudoso. Trata-se <strong>de</strong> um que exalta<br />
a profissão <strong>de</strong> publicitário, entre outras<br />
coisas, por pagar muito bem, o que explica<br />
ter atraído os melhores intelectuais. Literalmente<br />
diz a matéria: “seja qual for sua<br />
especialida<strong>de</strong> profissional, se você está<br />
pensando em ingressar na propaganda, faça-o.<br />
É fácil fazer uma carreira prestigiosa e<br />
<strong>de</strong> ótima remuneração. Em propaganda há<br />
lugar para todos”. Sauda<strong>de</strong>s! Há também<br />
um artigo <strong>de</strong> Edmur <strong>de</strong> Castro Cotti, na seção<br />
<strong>de</strong> Rádio e TV, on<strong>de</strong> ele conta que teve<br />
acesso a levantamento realizado por uma<br />
revista especializada sobre a cobertura que<br />
as emissoras <strong>de</strong> rádio americanas <strong>de</strong>ram ao<br />
ataque japonês a Pearl Harbor. Segundo a<br />
matéria, o furo pertence à CBS que, cinco<br />
minutos após o início do ataque, <strong>de</strong>u uma<br />
edição extraordinária. O locutor, com voz<br />
embargada, leu o telegrama enviado pelas<br />
agências <strong>de</strong> notícias:<br />
“A Casa Branca informa: a força aérea<br />
japonesa atacou Pearl Harbor!” A principal<br />
concorrente, a NBC, ficou com a glória <strong>de</strong><br />
ser a primeira a falar diretamente do local,<br />
com seu correspon<strong>de</strong>nte terminando<br />
a transmissão com outras palavras históricas:<br />
“esta é uma guerra <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>”. A Re<strong>de</strong><br />
Mutual transmitia um jogo <strong>de</strong> baseball<br />
e na emissora <strong>de</strong> Denver um pastor falava<br />
da Bíblia quando foram interrompidos por<br />
edições extras com a notícia. Receberam<br />
inúmeros telefonemas irados: “e o baseball?”<br />
... “e a leitura da Bíblia?” Um ouvinte<br />
<strong>de</strong> Denver entrou para história, pois disse<br />
ao telefone: “quer dizer que os senhores<br />
consi<strong>de</strong>ram uma notícia do Havaí mais<br />
importante do que a palavra <strong>de</strong> Deus?” Na<br />
verda<strong>de</strong>, com exceção daqueles que tinham<br />
família servindo em Pearl Harbor e nas áreas<br />
militares, os Estados Unidos levaram<br />
algum tempo para se mobilizarem com a<br />
notícia do ataque japonês. Não há registro<br />
<strong>de</strong> um único comentário feito pelos profissionais<br />
<strong>de</strong> rádio cujos programas foram interrompidos.<br />
Em contraponto, o colunista<br />
comenta que, em 1938, Orson Welles parou<br />
a Costa Oeste com sua dramatização da invasão<br />
da Terra. Nessa ocasião, milhões <strong>de</strong><br />
pessoas saíram às ruas dispostas a oferecer<br />
uma barreira humana ao ataque <strong>de</strong> Marte.<br />
Mesmo repetindo que se tratava da radiofonização<br />
<strong>de</strong> uma obra literária, Welles levou<br />
pânico a cida<strong>de</strong>s inteiras. A revista Propaganda<br />
está completando 60 anos. Esses<br />
assuntos que eu <strong>de</strong>staquei encerram uma<br />
lição. O problema é que eu não sei qual é.<br />
PS. O título <strong>de</strong>sta crônica é uma homenagem<br />
a Orígenes Lessa, que dizia que “o<br />
título <strong>de</strong> um anúncio é sempre uma promessa<br />
que <strong>de</strong>ve agarrar o leitor”. Se você<br />
chegou até aqui, sou um bom aluno do<br />
gran<strong>de</strong> mestre.<br />
Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />
e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />
editor e professor<br />
lulavieira.luvi@gmail.com<br />
32 <strong>16</strong> <strong>de</strong> <strong>setembro</strong> <strong>de</strong> <strong>2019</strong> - jornal propmark