13.09.2019 Views

edição de 16 de setembro de 2019

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

última página<br />

Dave Moreno/Unsplash<br />

O riso nervoso<br />

da insensibilida<strong>de</strong><br />

Claudia Penteado<br />

Assuntando sobre o episódio em torno<br />

da fala polêmica do ministro da Economia,<br />

Paulo Gue<strong>de</strong>s, recebida com risos por<br />

uma plateia <strong>de</strong> empresários em Fortaleza,<br />

no Ceará, recentemente, um amigo me sugeriu<br />

dar uma espiada no livro O riso, <strong>de</strong><br />

Henri Bergson. O livro me atropelou. Ler<br />

o ensaio <strong>de</strong> Bergson sobre a significação<br />

do cômico foi interessante e me ajudou a<br />

aprofundar a reflexão sobre <strong>de</strong> que diabos<br />

ria, afinal <strong>de</strong> contas, uma plateia <strong>de</strong> empresários,<br />

que certamente mandaria <strong>de</strong>mitir<br />

funcionários das próprias empresas que<br />

fizessem comentários públicos tão duvidosos<br />

quanto os que temos lido e ouvido,<br />

com frequência inquietante, na mais alta<br />

patente da política não só nacional, como<br />

<strong>de</strong> outras nações. É bem verda<strong>de</strong> que o ministro<br />

se <strong>de</strong>sculpou, através <strong>de</strong> comunicado,<br />

da brinca<strong>de</strong>ira feita. Mas a<br />

plateia... atravessou o episódio<br />

anônima e calada. Do que riam?<br />

Foi um riso nervoso, <strong>de</strong> quem ri<br />

sem convicção, só para acompanhar<br />

o grupo? Ou um riso solto,<br />

que estava embargado, <strong>de</strong>sejado<br />

mas contido até então, e que finalmente<br />

encontrou seu rumo<br />

no encanto do coletivo?<br />

“riso parece<br />

precisar <strong>de</strong><br />

eco. e que,<br />

por mais<br />

franco que<br />

seja, sempre<br />

oculta um<br />

acordo”<br />

Bergson diz, por exemplo,<br />

que o riso parece precisar <strong>de</strong><br />

eco. E que, por mais franco que seja, sempre<br />

oculta um acordo, uma cumplicida<strong>de</strong>,<br />

com os outros que riem. É um gesto social.<br />

Para Bergson, a indiferença é o ambiente<br />

natural do riso, e o seu maior inimigo, é<br />

a emoção. O riso <strong>de</strong>manda certo teor <strong>de</strong><br />

insensibilida<strong>de</strong> para acontecer. De fato, é<br />

fácil reconhecer a insensibilida<strong>de</strong> naquele<br />

riso. Um riso proferido por uma plateia<br />

<strong>de</strong> espectadores não <strong>de</strong> uma palestra,<br />

mas espectadores da vida, naquele exato<br />

instante <strong>de</strong>sconectados, <strong>de</strong>scompromissados,<br />

soltos, protegidos pelo anonimato<br />

da multidão, não implicados em consequências.<br />

Como o riso do espectador, no<br />

teatro, que é tanto maior quanto mais<br />

cheia esteja a sala - conforme aponta Bergson.<br />

Diz o filósofo francês: a verda<strong>de</strong>ira<br />

causa do riso é o <strong>de</strong>svio da vida, na direção<br />

da mecânica. Automatismo. De volta<br />

às suas rotinas, nas suas salas em escritórios<br />

bacanas, ou mesmo na rotina dos<br />

posts <strong>de</strong> suas re<strong>de</strong>s sociais, falas públicas<br />

ou entrevistas à imprensa, empresários<br />

procuram seguir à risca a cartilha da ética<br />

e da responsabilida<strong>de</strong>. Qualquer comportamento<br />

(público) duvidoso po<strong>de</strong> <strong>de</strong>struir<br />

carreiras, sem perdão. É o que temos visto,<br />

e meu colega <strong>de</strong> coluna, Stalimir Vieira,<br />

tratou disso engenhosamente em coluna<br />

recente: Quando as re<strong>de</strong>s sociais <strong>de</strong>mitem.<br />

Empresas e empresários não perdoam<br />

e não são perdoados, quando erram em<br />

praça pública. Quem tropeçar em valores<br />

sexistas, racistas ou preconceituosos <strong>de</strong><br />

qualquer natureza, ainda que num extraordinário<br />

ato falho, terá a fogueira, nem<br />

que seja do compliance, como <strong>de</strong>stino.<br />

Políticos não, ou quase nunca. Políticos<br />

sobrevivem. E sequer pe<strong>de</strong>m <strong>de</strong>sculpas.<br />

É um paradoxo. Políticos e<br />

empresários, governo e empresas<br />

caminham, tantas vezes, por<br />

vias antagônicas do ponto <strong>de</strong><br />

vista da ética e da responsabilida<strong>de</strong>,<br />

como se não habitassem<br />

o mesmo planeta. Nos Estados<br />

Unidos, enquanto executivos são<br />

banidos <strong>de</strong> empresas e têm seus<br />

perfis no LinkedIn manchados<br />

para todo o sempre, o presi<strong>de</strong>nte<br />

Trump não me<strong>de</strong> falas e segue<br />

cometendo gafes éticas sem qualquer consequência.<br />

Vivemos fenômeno semelhante<br />

no Brasil, como se a política <strong>de</strong> fato pertencesse<br />

a uma outra or<strong>de</strong>m e conjunto <strong>de</strong><br />

regras, numa assombrosa inconsequência.<br />

Há exceções, claro, <strong>de</strong> ambos os lados - na<br />

política, e no empresariado. Mas são dois<br />

mundos que, volta e meia, se chocam, num<br />

movimento necessário e salutar. Atos e falas<br />

<strong>de</strong> políticos e governos frequentemente<br />

geram, por parte <strong>de</strong> empresas, reações e<br />

respostas corajosamente questionadoras,<br />

como convém a quem se posiciona neste<br />

planeta <strong>de</strong>vidamente implicado, inserido<br />

na realida<strong>de</strong>, preocupado com o rumo e o<br />

futuro não só seu, mas do seu entorno, seres<br />

e coisas. Na lógica <strong>de</strong> Bergson, quem<br />

não ri da piada <strong>de</strong> ética duvidosa, sente.<br />

Porque está vivo e consciente.<br />

jornal propmark - <strong>16</strong> <strong>de</strong> <strong>setembro</strong> <strong>de</strong> <strong>2019</strong> 57

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!