You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
cena 11: um exemplo de evolução cultural<br />
“O modo de pensar o mundo é o modo de realizá-lo na carne.”<br />
Helena Katz<br />
A história do Cena 11 é o seu contexto de complexidade.<br />
O Grupo Cena 11 Cia. de Dança, como se pôde perceber no capítulo anterior, permite<br />
muitas possibilidades de pesquisa. Sua <strong>dança</strong> é complexa, rica em detalhes, e oferece uma<br />
cartilha de opções para estudo. A ambição deste livro, em primeiro lugar, é a tentativa de<br />
tornar este grupo um objeto de investigação e, assim, descrevê-lo, observá-lo, conhecê-<br />
lo em suas minúcias, sem que isso represente, de nenhum modo, esgotá-lo. O interesse<br />
aqui é o de fornecer uma via de acesso, uma tradução ainda que primeira do que vem a<br />
ser aquilo que acontece no palco. Porque <strong>dança</strong>, este artefato humano efêmero, existe<br />
enquanto dura nos corpos daqueles que a fazem acontecer (e permanece na memória <strong>dos</strong><br />
que a assistiram, nos comentários, registros).<br />
Neste sentido, o entendimento de funcionamento de mundo trazido pela hipótese da<br />
coevolução, junto com a Teoria Geral <strong>dos</strong> Sistemas, tem sido um instrumento útil por<br />
revelar, num plano ontológico e geral, a engrenagem <strong>dos</strong> sistemas vivos. Lembramos que<br />
a <strong>dança</strong> é aqui tratada como um sistema vivo em contínuo processo de evolução, onde<br />
as idéias corporificadas ganham continuidade no tempo, se adaptando e se modificando.<br />
Este processo de complexificação é uma condição de existência e vale para humanos,<br />
<strong>dança</strong>s, bichos, idéias ou qualquer coisa viva que queira sobreviver.<br />
O percurso artístico do Grupo Cena 11 Cia. de Dança é um modelo de evolução cultural.<br />
Quando, em 1994, o grupo montou o espetáculo Respostas sobre Dor foi dado início a um<br />
processo que dura até hoje. Respostas sobre Dor realizou um recorte, mais ou menos como<br />
se o grupo estivesse selecionando o seu universo ou campo temático: aquilo que faria<br />
parte deste sistema e aquilo que não faria parte dele. O Cena 11 destacou (selecionou)<br />
poesia, osso, vídeo, jazz, rock, MPB, HQ, microfone, músicos em cena, prótese, máquina,<br />
um determinado corpo técnico etc.<br />
Em O Novo Cangaço, uma nova seleção, porém dilatando escolhas anteriores. Parte do universo<br />
se repete: figurinos inspira<strong>dos</strong> em HQ, videocenografia, MPB, exposição do osso etc. Ocorrem<br />
também atualizações (remodelagens) nos padrões de movimentos surgi<strong>dos</strong> na obra anterior.<br />
É possível observar que padrões de movimento podem perder a estabilidade de um<br />
espetáculo para o outro, como aconteceu na passagem de Respostas sobre Dor para O<br />
1 Estas reflexões estão em<br />
termos gerais. Cada bailarino<br />
carrega um histórico corporal<br />
particular. Há, por exemplo,<br />
quem nunca ou pouco<br />
tenha <strong>dança</strong>do jazz, mas seja<br />
treinado no balé; há ainda<br />
um tempo de elaboração<br />
para tornar-se familiar<br />
naquele corpo. A evolução<br />
não atua de maneira linear e<br />
progressiva. Há acaso e autoorganização.<br />
Os bailarinos<br />
que estão mais tempo na<br />
companhia são Alejandro<br />
Ahmed, Karin Serafin e<br />
Anderson Gonçalves.<br />
Novo Cangaço, com respeito ao balé clássico. 1 A técnica tende a se agregar no corpo, para<br />
ser desconstruída, ou melhor, reconfigurada com a contaminação do jazz, que, por sua<br />
vez, se redimensiona com a entrada da nova informação. Reflexos simultâneos e similares<br />
acontecem com a (e na) <strong>dança</strong>. Neste caso, a contaminação deste cruzamento de informações<br />
resultou num balé <strong>dança</strong>do para dentro, como o jazz. O que não deixa também de implicar<br />
uma oposição ao preestabelecido, a antiga subversão que fez o Cena 11 crescer.<br />
Em In’perfeito há um salto. Surgem novos padrões (mais complexos), que ganham<br />
estabilidade e os corpos rascunham sua assinatura. No espetáculo, não se economizam<br />
soluções criativas e recursos tecnológicos. As próteses são usadas para amplificar os senti<strong>dos</strong><br />
do corpo. O microfone, ao ampliar a voz do bailarino, não apenas aumenta o seu volume:<br />
leva o seu corpo até o espectador. Um corpo surround. Não é a conseqüência, o efeito da<br />
tecnologia, que interessa e sim o seu feito de expandir o corpo para além de sua superfície.<br />
Superexposto, o corpo do Cena 11 não cabe em si. Corpo múltiplo: está ao mesmo tempo<br />
na <strong>dança</strong>, na tela, na voz amplificada, na música, no alcance das próteses, na espacialização.<br />
Um corpo que não tem o tamanho habitual, um corpo bem perto de quem o assiste.<br />
Já A Carne <strong>dos</strong> Venci<strong>dos</strong> no Verbo <strong>dos</strong> Anjos apresenta-se como uma espécie de estudo<br />
para o espetáculo seguinte, Violência. A Carne… evidencia um estágio da evolução,<br />
da trajetória, da transformação das idéias. Violência é o seu desdobramento – com<br />
deslocamentos e borrações – como se houvesse um trabalho dramatúrgico, no qual os<br />
bailarinos fossem parte de um experimento (ou do desenrolar de um videogame). A<br />
pergunta deste experimento está em A Carne <strong>dos</strong> Venci<strong>dos</strong> no Verbo <strong>dos</strong> Anjos e sua<br />
investigação se concretiza em Violência.<br />
110 Evolução de uma obra para outra.<br />
No percurso evolutivo, pode acontecer, de uma coreografia para outra, um determinado<br />
padrão de movimento, ao misturar-se com novas informações, fazer surgir novos padrões.<br />
E mesmo dentro <strong>dos</strong> padrões estáveis há variações.<br />
Pode acontecer também que não se reconheça mais, a partir de certa época, o padrão<br />
original de movimento. No caso do Cena 11, vale o exemplo do balé ou mesmo do jazz.<br />
Os bailarinos fazem aulas de técnica clássica desde 1995 e, quando assistimos a Violência,<br />
não enxergamos nada de balé e pouco de jazz. É lógico que um olho treinado poderia<br />
111