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de altura. A intérprete Hedra Rockenbach está dentro de uma espécie de andador-andaime,<br />
criado especialmente para ela e para a obra. Esta estrutura metálica nos remete a aparelhos<br />
para corpos com necessidades especiais. É o corpo do diferente, o corpo-marginal, que ganha<br />
visibilidade no percurso do Cena 11. Neste momento, o corpo do outro intérprete está no<br />
chão formando um ângulo reto com o de Hedra. A diferença é irrecusável/incontestável.<br />
O chão é vermelho. A música invade nossos ouvi<strong>dos</strong>, causando um certo incômodo.<br />
Ahmed aproxima-se do cenário que, nesse momento, torna-se evidente: placas de acrílico<br />
estruturam uma quarta parede no palco. “[...] uma espécie de cela de vidro com três<br />
placas de policarbonato seguradas por metalon envelhecido”. (KATZ, 1999)<br />
O bailarino pega algo e põe na boca. Trata-se de uma estrutura odontológica, que<br />
deixa os dentes e a gengiva expostos. Hedra começa a cantar baixinho. As palavras têm<br />
distorções e ecos.<br />
Começa a se delinear mais claramente, nesta obra, o início do estabelecimento de uma<br />
interface: a do videogame. Sem precisar exatamente estar na platéia, a interface do Cena<br />
11 é como a de uma televisão ou como a de um computador. O que vemos é através<br />
de uma tela, uma lente. Em Violência, Ahmed constrói esta separação entre público e<br />
espetáculo, entre linguagem e comunicação, passo a passo. A Carne <strong>dos</strong> Venci<strong>dos</strong> no<br />
Verbo <strong>dos</strong> Anjos tem diminuto, resumido e cru o que em Violência ganha conteúdo e<br />
expansão. As placas e telas nos protegem de sua <strong>dança</strong>, e por ironia parecem nos atingir<br />
com muito mais veemência.<br />
Alejandro arrasta-se, como se não pudesse usar as pernas, até um espaço entre as placas<br />
de acrílico, onde há um microfone. Posiciona sua cabeça e, com o movimento da boca<br />
e das mandíbulas, expulsa a estrutura protética. Enquanto os slides são projeta<strong>dos</strong>, o<br />
intérprete começa a declamar, ajoelhado, a poesia Bilhete Postal, de Augusto <strong>dos</strong> Anjos.<br />
Suas palavras reverberam com o eco.<br />
Ilustre professor da Carta Aberta: – Almejo<br />
Que uma alimentação a fiambre e a vinho e a queijo<br />
Lhe fortaleça o corpo, e assim lhe fortaleça<br />
As mãos, os pés, a perna et coetera e a cabeça.<br />
Continue a comer como um monstro no almoço,<br />
Inche como um balão, cresça como um colosso<br />
E vá crescendo e vá crescendo e vá crescendo,<br />
E fique do tamanho extraordinário e horrendo<br />
Do célebre Titão e do Hércules lendário;<br />
O seu ventre se torne um ventre extraordinário,<br />
Cheio do cheiro ruim de féti<strong>dos</strong> resíduos;<br />
As barrigas então de cinqüenta indivíduos<br />
Não poderão caber na sua ampla barriga.<br />
Não mais lhe pesará a desgraça inimiga,<br />
O seu nome também não será mais Antônio.<br />
To<strong>dos</strong> hão de chamá-lo o colosso, o demônio,<br />
A maravilha das brilhantes maravilhas.<br />
As hienas carniçais, as leoas e as novilhas,<br />
Diante do seu vigor recuarão e diante<br />
Do estrídulo metal de sua voz atroante<br />
De certo, correrão mansas e espavoridas.<br />
Se as minhas orações, forem, pois, atendidas,<br />
O senhor há de ser o Teseu do universo.<br />
Seja um gigante, pois; não faça, porém, verso<br />
De qualidade alguma e nem também me faça<br />
Artigos tresandando a bolor e a cachaça,<br />
Ricos de incorreções e de erros de gramática,<br />
Tenha vergonha, esconda essa tendência asnática,<br />
Que somente possui o seu cérebro obtuso –<br />
Esconda-a, e nunca mais se exponha a fazer uso<br />
Da pena, e nunca mais desenterre alfarrábios.<br />
Os tolos, em geral, são ti<strong>dos</strong> como sábios<br />
Quando querem calar-se e reprimir-se sabem,<br />
O senhor é papalvo e os papalvos não cabem<br />
No centro literário e no centro político.<br />
Respeite-me, portanto!<br />
Augusto <strong>dos</strong> Anjos<br />
86 O bailarino Alejandro Ahmed deforma seu rosto em contato com o cenário.<br />
Slides projeta<strong>dos</strong> durante o espetáculo, junto com texto de Augusto <strong>dos</strong> Anjos.<br />
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