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a dança dos encéfalos acesos

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12<br />

A responsabilidade com a construção do conhecimento deve compartilhar delimitações<br />

em to<strong>dos</strong> os cantos, mas, muito provavelmente, em países em desenvolvimento tal<br />

responsabilidade parece precisar ser ainda um pouco mais cuidada. Curiosamente, onde<br />

tudo está por fazer, cada passo parece muito decisivo, fundamental, capaz de instaurar<br />

ou desinstaurar o indispensável.<br />

No meio disso, a <strong>dança</strong>. Transmitida aqui basicamente pela tradição oral e em cursos livres,<br />

começou a ter esse estatuto modificado quando, em 1956, a Universidade Federal da Bahia<br />

criou o primeiro curso superior de <strong>dança</strong> no Brasil. Passaram-se mais de duas décadas até<br />

que outras graduações começassem a surgir para contribuir com a produção de reflexão<br />

na área. Depois, e ainda lastreado em iniciativas individuais, aqui e ali passou a pipocar<br />

o interesse por uma especialização continuada, que desembocou no início de pesquisas<br />

em nível de pós-graduação. Mesmo sem cursos específicos de <strong>dança</strong>, os interessa<strong>dos</strong> se<br />

abrigavam em programas de outras especialidades para desenvolver temas de <strong>dança</strong>.<br />

Numa sociedade tão marcada pela injusta distribuição, do acesso à educação, à saúde, à<br />

habitação ou ao lazer, cabe a algumas instituições a responsabilidade de colaborar mais<br />

vivamente para a mu<strong>dança</strong> desse cenário, e a universidade está entre elas. Transformações,<br />

sabemos to<strong>dos</strong>, se dão por ações inseminadoras. Na <strong>dança</strong>, sua recente relação com a<br />

universidade pode ser entendida como uma delas. Trata-se de um fato importante porque<br />

vem promovendo novas marcas no velho ambiente – o que pode ser atestado, por exemplo,<br />

quando chega ao mercado um livro como este que você tem agora em mãos.<br />

Entendida pela maioria como uma atividade eminentemente prática, do palco, vinculada<br />

à inspiração daqueles seres especiais chama<strong>dos</strong> artistas e, exatamente como fruto desse<br />

quase consenso, mantida despregada de estu<strong>dos</strong> teóricos, a <strong>dança</strong> teve essas não-verdades<br />

abaladas quando os próprios artistas passaram a escolher as faculdades como caminho.<br />

Eles mesmos escancararam a indissolúvel ligação entre teoria e prática de duas maneiras:<br />

com sua presença nos cursos superiores, no papel de artistas-pesquisadores, e também<br />

tornando-se objeto de investigações acadêmicas.<br />

O percurso de Maíra Spanghero ilustra a nova tendência. Ex-membro do Cena 11, a<br />

companhia de <strong>dança</strong> que colocou Florianópolis na trilha da contemporaneidade, fez<br />

da sua vivência a ignição inspiradora do mestrado que defendeu no programa de pós-<br />

graduação em comunicação e semiótica da PUC/SP. Este livro brotou desse mestrado. Ou<br />

seja, do convívio com as teorias descobertas nas disciplinas lá cursadas, <strong>dos</strong> debates com<br />

seus colegas pesquisadores, da impregnação da vida universitária. E a experiência que<br />

poderia ter sido reduzida a um registro no seu currículo de uma atividade do seu passado<br />

recebeu um olhar que a catapultou para a distância indispensável que condiciona que um<br />

assunto se torne objeto de investigação científica.<br />

Tal operação é exatamente a que marca a diferença, porque constrói um tipo de atitude<br />

capaz de mudar o cenário da <strong>dança</strong> no nosso país. Pois se este tipo de reflexão se disseminar<br />

e se a história recente, ao lado da produção que a qualifica, forem constantemente<br />

transforma<strong>dos</strong> em objetos de estudo por parte <strong>dos</strong> pesquisadores brasileiros, os pessimistas<br />

precisarão se dar conta da inconveniência e inadequação do seu discurso. Se a escolha<br />

aqui empreendida se disseminar, em pouco tempo o cenário da <strong>dança</strong> será outro no<br />

Brasil. Porque estaremos produzindo os registros e as reflexões que legam a fertilidade ao<br />

presente, condição que faz com que o futuro não desconheça o passado.<br />

O que Maíra oferece aqui é uma senha. Com ela se adentra em outro terreno, onde há<br />

um portal que deve ser transposto. Trata-se da passagem para um ambiente em que a<br />

<strong>dança</strong> é tratada como produção de conhecimento. A <strong>dança</strong> do Cena 11, então, se torna<br />

um tecido para o qual se olha não para apreciar a sua beleza inusitada, tampouco para<br />

se surpreender com a novidade <strong>dos</strong> elementos emprega<strong>dos</strong> na sua confecção, mas sim em<br />

busca do entendimento da sua trama.<br />

Por isso, hipóteses são apresentadas como quem pavimenta caminhos. Talvez para que nos<br />

sirvam como guias em um mundo povoado por carne, próteses, riscos além do pensável,<br />

corpos que deslizam em patins, que se atiram contra e a favor do chão, de objetos, de<br />

paredes, <strong>dos</strong> outros corpos, que se empinam em pernas de pau, que giram no ar. Pororocas<br />

permanentes também entre as linguagens que convocam para a sua. Música, músicos<br />

– sempre como personagens de um DJ ausente, mas cujas misturas se fazem onipresentes.<br />

E figurinos, histórias em quadrinhos, iluminação – rastros de festas, de MTV, de Cartoon<br />

Network, do mundo fashion que se apropriou da radicalidade punk. Tudo enfiado num<br />

mesmo videogame.<br />

Na medida em que um livro pode tornar-se um modo de despejar idéias em muitos<br />

ondes não planeja<strong>dos</strong> pelo seu autor, a amplitude do seu alcance estimula devaneios de<br />

que ele poderá porejar um vapor tão extenso que correrá mun<strong>dos</strong> e atravessará fun<strong>dos</strong>.<br />

Distribuindo, enfim, o que outrora permanecia escondido no intramuros acadêmico,<br />

naquele mecanismo de usura que separou a universidade da vida, e que esta nova geração<br />

de pesquisadores aposentou.<br />

Trabalhos como o de Maíra Spanghero revitalizam o novo momento que caracteriza a<br />

relação da <strong>dança</strong> com a universidade. E este livro aponta um caminho precioso pois, além<br />

de se debruçar sobre uma companhia sediada fora do eixo São Paulo–Rio de Janeiro, o<br />

faz sem usar as teorias habituais.<br />

Blim-blom, os sinos da bem-aventurança começam a soar. E a névoa se torna poesia.<br />

Helena Katz

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