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(Violência) e chegando aos robôs (Projeto SKR e SkinnerBox), uma genealogia de idéias<br />
vem criando descendência através de implementações nos corpos. O corpo remoto<br />
controlado é a síntese dessa evolução, no estágio em que ela se encontra. É a forma como<br />
o corpo fala de si na <strong>dança</strong> do Cena 11.<br />
O projeto do corpo-marionete foi alinhavado em Respostas sobre Dor e O Novo Cangaço,<br />
mas foi em In’perfeito que ela ganhou clareza. A idéia de manipular o corpo do outro<br />
adquiriu estabilidade e vem sendo investigada com maior propriedade desde então.<br />
Tanto que da marionete surgiu o corpo do videogame e, nas mais recentes produções,<br />
os robôs foram trazi<strong>dos</strong> à cena. No Procedimento 1 do Projeto SKR, que originará o<br />
espetáculo SkinnerBox, a ser estreado em 2004, observamos mais um estágio da mesma<br />
formulação.<br />
Uma outra maneira de enunciar o mesmo entendimento é dizer que o robô foi anunciado<br />
na marionete e no videogame.<br />
A respeito das marionetes, existe um texto clássico que serve para, entre outras coisas,<br />
aprofundarmos a discussão da tecnologia no corpo do Cena 11 através das próteses. Útil<br />
também para pensarmos a idéia do corpo remoto controlado e do autômato.<br />
No inverno de 1801, o escritor Heinrich von Kleist teve uma conversa intrigante a respeito<br />
do teatro de marionetes com Herr C—, bailarino principal em uma ópera que passava pela<br />
cidade em que eles se encontravam. O colóquio entre os dois transformou-se no texto On<br />
the Marionette Theater, 2 publicado nove anos depois e considerado hoje uma referência<br />
sobre o assunto. O texto será discutido a seguir, para detalhar a idéia do corpo remoto<br />
controlado construído pelo Cena 11.<br />
Herr C—- estava encantado com as marionetes e acreditava plenamente que, se um<br />
<strong>dança</strong>rino quisesse se aperfeiçoar, aprenderia muitas coisas com os tais bonecos articula<strong>dos</strong>.<br />
A curiosa declaração deixou Kleist com os ouvi<strong>dos</strong> atentos ao que o amigo tinha a dizer,<br />
já que seria difícil fazê-lo crer que o movimento mecânico de uma marionete poderia ser<br />
mais gracioso que a estrutura do corpo humano. Inclusive, afirmava o bailarino, só para<br />
começar o assunto, alguns <strong>dos</strong> movimentos encontra<strong>dos</strong> nos bonecos, especialmente os<br />
pequenos, eram tão cheios de graça como na <strong>dança</strong>, coisa com que to<strong>dos</strong> haveriam de<br />
concordar.<br />
Uma primeira coisa a esclarecer seria então o funcionamento do mecanismo dessas<br />
figuras, para assim destrinchar como o movimento aconteceria num corpo como esse.<br />
Kleist pergunta: “Como seria possível controlar os membros individuais e suas partes sem<br />
ter uma miríade de fios ata<strong>dos</strong> nos de<strong>dos</strong> de alguém?”<br />
2 Originalmente<br />
publicado como Über<br />
das Marionettentheater,<br />
Berliner Abendblätter, 12-<br />
14 de dezembro de 1810,<br />
p. 415-420. Traduzido para<br />
o inglês por Roman Paska.<br />
Lembrei-me da marionete-bailarina que possuo com cinco fios ata<strong>dos</strong> a uma armação:<br />
um na cabeça, um em cada joelho e um em cada braço. A estrutura de madeira que os<br />
sustenta tem a forma de um sinal “mais”, em que cada ponta ampara um <strong>dos</strong> fios, exceto<br />
a da frente que segura os dois fios presos nos pulsos. No caso dessa marionete, não se<br />
deve imaginar que cada membro seja puxado ou posicionado separadamente porque<br />
quando inclino um lado da estrutura para baixo, toda a boneca se mexe e não apenas<br />
uma perna ou um braço.<br />
Há uma grande variedade de bonecos, marionetes e figuras de manipulação produzidas<br />
em diversas culturas, como o bunkaru do Japão. Nesse caso, três operadores manipulam o<br />
movimento e o resultado é uma perfeita impressão de que os bonecos se deslocam num plano<br />
imaginário horizontal, respeitando assim um suposto centro de gravidade. Já na sua explicação,<br />
Herr C—- afirma que “cada movimento tem seu centro de gravidade e bastaria controlar esse<br />
ponto com o interior da figura. Os membros”, continua, “nada mais são que pêndulos segui<strong>dos</strong><br />
por si mesmos de uma maneira mecânica, sem qualquer assistência distante”.<br />
Desta maneira, o movimento parece simples: “Sempre que o centro de gravidade se mover<br />
numa linha reta, os membros descrevem curvas; e a figura inteira treme fortuitamente,<br />
assumindo com freqüência um tipo de movimento rítmico similar ao <strong>dança</strong>r”.<br />
Mas, indaga Kleist, e a pessoa que opera os bonecos, o manipulador, precisaria ser<br />
um <strong>dança</strong>rino ou necessariamente deveria ter alguma noção da beleza na <strong>dança</strong>? Seu<br />
interlocutor acreditava que a mecânica de operação da marionete era relativamente fácil<br />
embora achasse que não se deveria exercer a profissão sem sentimento. “A linha que o<br />
centro de gravidade tinha que descrever era certamente simples e […], na maioria <strong>dos</strong> casos,<br />
seria reta. Em casos onde ela fosse curvada, sua curvatura parecia somente do primeiro ou<br />
no máximo do segundo grau; e, no último caso, seria somente elipsoidal, uma forma de<br />
movimento completamente natural para o corpo humano (por causa das juntas), que por<br />
esta razão não exigia do operador uma grande habilidade a ser apontada.” (KLEIST, 1991)<br />
Kleist passa a ver com novos olhos aquilo que imaginava de um marionetista, um sujeito<br />
entediado girando uma manivela. Na verdade, “os movimentos de seus de<strong>dos</strong> estão<br />
relaciona<strong>dos</strong> aos movimentos <strong>dos</strong> bonecos ata<strong>dos</strong> a eles, um pouco como os números para<br />
algoritmos ou a assíntota para a hiperbola”, explicou Herr C—-. Ao mesmo tempo, ele<br />
acreditava que até o último fragmento de espírito poderia ser removido da boneca, e que<br />
sua <strong>dança</strong> poderia tomar lugar no reino das forças mecânicas – através de uma manivela.<br />
O animado Herr C—- chegou a lançar o desafio de que, se ele tivesse a marionete adequada<br />
em suas mãos, poderia performar uma <strong>dança</strong> de tal maneira que nenhum outro bailarino<br />
humano seria capaz, incluindo o próprio Vestris, sumidade da <strong>dança</strong> nesse período.<br />
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