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grupo de jovens, sem recursos para deixar o país, decidiu reverter a situação com a única<br />
arma de que dispunham: a música”. 2 Era o embrião de um movimento que injetou vida<br />
na cultura brasileira: o mangue beat.<br />
O movimento surgiu do encontro entre Fred 04, líder da banda Mundo Livre S/A, e Francisco<br />
França, o Chico Science, na época líder do Loustal, que mais tarde originou a banda Chico<br />
Science & Nação Zumbi. O manifesto Caranguejos com Cérebro, redigido pelos dois artistas,<br />
divulgou o conceito do mangue beat: criar um ecossistema cultural tão rico como o <strong>dos</strong><br />
manguezais. Música, moda e cinema faziam parte dele e essas idéias foram disseminadas<br />
por canais de televisão, CDs, shows, além de uma rede informal de comunicação.<br />
O trecho abaixo, extraído do manifesto, deixa claro que tipo de idéias o movimento tinha:<br />
“Emergência! Um choque rápido ou Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico<br />
para saber que a maneira mais simples de matar um sujeito é obstruir as suas veias. O<br />
modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como Recife é<br />
matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão<br />
crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar<br />
as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o<br />
que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.<br />
Em mea<strong>dos</strong> de 91, começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um<br />
núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo é engendrar um ‘circuito<br />
energético’ capaz de conectar as boas vibrações <strong>dos</strong> mangues com a rede mundial de<br />
circulação de conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama.<br />
Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessa<strong>dos</strong> em quadrinhos, TV interativa,<br />
anti-psiquiatria, Bezerra da Silva, hip hop, midiotia, artismo, música de rua, John Coltrane,<br />
acaso, sexo não-virtual, conflitos étnicos e to<strong>dos</strong> os avanços da química aplicada no<br />
terreno da alteração e expansão da consciência”. 3 (FRED 04)<br />
Situação parecida ocorreu em Florianópolis, que, apesar de estar entre as cidades<br />
brasileiras de melhor qualidade de vida, também não oferecia muitas oportunidades aos<br />
bailarinos do Cena 11. A proposta do mangue beat teve familiaridade com os ideais do<br />
grupo e eles também decidiram reverter a situação na qual se encontravam, mas com a<br />
arma de que dispunham: a <strong>dança</strong>.<br />
O Novo Cangaço, espetáculo da companhia, é como se fosse a porção <strong>dança</strong> do movimento<br />
mangue beat. Tais idéias, bem como sua estética, encontraram interlocução, expansão,<br />
irradiação, reverberação, contaminação e conexão no sul do país, com a <strong>dança</strong> do Cena<br />
11. Na cabeça de seu coreógrafo, Alejandro Ahmed, esta ideologia teve inicialmente<br />
2 Extraído do texto Mangue<br />
em Movimento, de Antonio<br />
Gutierrez, para o evento de<br />
mesmo nome organizado pelo<br />
Sesc Pompéia em 1998.<br />
3 Trecho extraído do<br />
manifesto Caranguejos com<br />
Cérebro, redigido por Fred 04<br />
e publicado no encarte do<br />
CD Da Lama ao Caos (1995),<br />
de Chico Science & Nação<br />
4 Texto de apresentação<br />
do espetáculo, escrito por<br />
Alejandro Ahmed, intitulado<br />
O Novo Cangaço.<br />
abrigo estável, e o Cena 11 pôde apresentar-se ao cenário da <strong>dança</strong> brasileira. Mas foi a<br />
música, em primeiro lugar, quem lançou os acordes iniciais deste espetáculo, como explica<br />
Ahmed, em seu texto sobre O Novo Cangaço:<br />
“Música popular brasileira nova, a nova música popular muito mais que brasileira. Esta e<br />
o seu cenário atual foram impulso <strong>dos</strong> primeiros passos do Grupo Cena 11 no caminho da<br />
concepção do Novo Cangaço.<br />
Movimentos como o ‘Mangue Beat’ no Recife, encabeçado pela banda ‘Chico Science<br />
& Nação Zumbi’, dão o tom da reestruturação da MPB, o ‘Neo-Batismo’ da guitarra<br />
pelo apadrinhamento do timbal, por vezes acompanha<strong>dos</strong> por um berimbau mixado<br />
em computador.<br />
O cangaço, havia 50 anos, fazia do banditismo uma estética de misturas (pensar no<br />
mosaico de indumentárias), um refúgio de assassinos-heróis. Uma subversão da ordem<br />
sem se preocupar com ela. Pois era inevitável, irreversível, existencial, o cangaço era uma<br />
sina que gravou o nome do nordestino na caatinga, no Brasil e no mundo.<br />
O Novo Cangaço traz a guitarra que boceja um cavaquinho, o enxerto que te dá liberdade,<br />
a liberdade que te faz indivíduo, a individualidade que te faz universal. O heroísmo que<br />
te faz marginal”. 4 (AHMED, Alejandro)<br />
O Novo Cangaço organizou o Cena 11 como uma tribo. Fortaleceu a estruturação<br />
do grupo. Um <strong>dos</strong> possíveis senti<strong>dos</strong> dessa afirmação aparece mais especificamente<br />
no desenvolvimento de uma espécie de corpo de baile. Uma construção de corpos<br />
individuais treina<strong>dos</strong> pelo mesmo pensamento de <strong>dança</strong>, que, nessa época, foi ganhando<br />
familiaridade, estabilidade e coletividade nos corpos. O Cena 11 começou a desenvolver<br />
uma gramática visível inicialmente na imagem de um corpo dobrado em suas articulações,<br />
que, depois, nos espetáculos seguintes, apareceu fluido no manejamento destas<br />
articulações. Nesse ponto começou a se alinhavar o corpo da marionete e do videogame,<br />
que ganha expansão em In’perfeito e Violência, respectivamente.<br />
O Novo Cangaço prega a estética da mistura como objetivo de universalidade e nele<br />
encontramos as mais diversas referências presentes na cultura e estética <strong>dos</strong> anos 90.<br />
Primeiro a noção de fronteiras rompidas entre a alta e a baixa cultura, uma característica<br />
importante na arte contemporânea. É a periferia que invade o centro de todas as formas,<br />
arrastando e devorando o que vem pela frente, além de impor a necessidade de uma nova<br />
ordem. Na primeira cena do espetáculo, Decapitação, os bailarinos alastram-se pelo palco<br />
enquanto o som de Chico Science diz: “Posso sair daqui pra me organizar, posso sair daqui<br />
pra desorganizar, da lama ao caos, <strong>dos</strong> caos à lama, um homem roubado nunca se engana<br />
[…] que eu me organizando posso desorganizar, que eu me desorganizando posso me<br />
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