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organizar”. Era a nova música popular brasileira que se anunciava. Cortante como as<br />
seqüências de movimentos ágeis que se desenvolviam de um lado para o outro do palco.<br />
Como escreveu Helena Katz: “Há um interesse em processar referências da alta e da baixa<br />
cultura comum aos dois (à <strong>dança</strong> e à banda de rock). Não à toa, o Cena 11 se voltou<br />
para o cangaço – um tema regional, que trata com entendimentos de quanto mais local,<br />
menos local. Isto é, quanto mais culturalmente localizado, mais identidade para trafegar<br />
no mundão globalizado. [...] Com postura de cantor de banda, Alejandro organiza as suas<br />
mensagens de duas maneiras: misturando-as à trilha sonora do seu espetáculo, na sua<br />
própria voz, e criando corpos onde a fricção entre a agressividade e a delicadeza ganhem<br />
movimento. Ele quer o amor sem esquecer da miséria da sociedade”. (KATZ, 1996, p.8)<br />
Referências da HQ nos figurinos, música brasileira hibridizada com rock<br />
pesado e música eletrônica, presença das novas tecnologias em contraste<br />
com a low tech, o orgânico e o biológico figurando entre algumas<br />
referências na cartilha destes mangueboys e manguegirls da <strong>dança</strong>. Suas<br />
cabeças estão raspadas e tatuagens aparecem em nucas, braços, barrigas,<br />
costas. Botas pretas (elemento do vestuário punk). Couro e plástico nos<br />
figurinos. A parte de cima da indumentária masculina lembra uma<br />
armadura. O top esquerdo transparente, nos figurinos femininos, alude<br />
ao olho cego de Lampião, o rei do cangaço. A inversão de gênero fica<br />
explícita quando os bailarinos usam tutu, a tradicional saia das bailarinas<br />
clássicas, e as bailarinas vestem camisa branca e calça preta (referência<br />
também ao vestuário do cantor e compositor Arnaldo Antunes). Esta<br />
inversão de vestimentas sinaliza também uma outra subversão, a de<br />
que o Cena 11 pode <strong>dança</strong>r algo bem diferente do clássico, ficando, por<br />
exemplo, de cabeça para baixo.<br />
Outro detalhe das cabeças raspadas é a impressão da androginia:<br />
meninas e meninos de cabeças raspadas se confundem para falar de<br />
valores universais e humanos.<br />
A videocenografia está presente em todas as oito cenas. No início da apresentação, são<br />
imagens de crânios e ossos de animais pendura<strong>dos</strong> por correntes que são projetadas. Este<br />
recurso funciona como um divisor, um introdutor das partes seguintes, e transcende a<br />
idéia de cenografia. O vídeo, muitas vezes, faz o trabalho de um diretor ou narrador das<br />
cenas, apresentando-as, emendando-as, pontuando início e fim. As emendas coreográficas<br />
e musicais também atuam com o vídeo. Isso pode ser traduzido como um estudo de<br />
demarcação <strong>dos</strong> limites, como cangaceiros que territorializam um espaço. Nos espetáculos<br />
posteriores, esse estudo de demarcação se desdobra em borração de limites, o que deixa<br />
as cenas interligadas pela idéia de desfronteirização.<br />
O fundo do palco é coberto por uma espécie de placa vazada,<br />
onde tubos de imagem de televisores, chapas de circuitos – ícones<br />
da natureza-morta da imagem –, ossos e crânios de cavalos, bois e<br />
cabritos se misturam. A estética da mistura, do novo com o antigo,<br />
da carne com a tecnologia, está representada na cenografia, seja na<br />
projeção de imagens, seja nos materiais.<br />
A parede bidimensional de ossos e crânios de animais mistura<strong>dos</strong> com<br />
circuitos eletrônicos forma a cenografia do fundo do palco. Expandi<strong>dos</strong>,<br />
são os ossos presentes nas 200 radiografias da cenografia de Respostas<br />
sobre Dor. Como se os ossos, anteriormente em raio X, ganhassem<br />
volume e materialidade no cenário de O Novo Cangaço. Esta película<br />
volumosa de ossos e materiais eletrônicos imprime uma textura, que<br />
pretende fundir carne e máquina, como os corpos do Cena 11 deixarão<br />
claro nos trabalhos seguintes. Quando o que está fora do corpo encarna,<br />
o cenário volumoso desaparece, como é o caso do primeiro procedimento<br />
do Projeto SKR.<br />
Os andaimes são espécies de cenografias móveis que interagem com os<br />
corpos de modo significativo, a ponto de tornar-se próteses, idéia que<br />
também ganha descendência em In’perfeito e A Carne <strong>dos</strong> Venci<strong>dos</strong> no<br />
Verbo <strong>dos</strong> Anjos.<br />
De uma maneira geral, O Novo Cangaço começa a promover uma série<br />
de deslocamentos que, no decorrer do tempo e nas novas produções,<br />
ganham vitalidade e singularidade.<br />
“Como é jovem e está cercado deles, Alejandro vai construir uma<br />
assinatura. Quem começa comprometido com valores assim, éticos e<br />
estéticos, aliás, um sempre termina resultando no outro, uma vez que<br />
não existe estética sem ética, promete um percurso que vale a pena<br />
acompanhar. Alejandro e o Cena 11 sintonizam as questões <strong>dos</strong> nossos<br />
dias. De que é feito o homem? De que serve a <strong>dança</strong>? Como é a <strong>dança</strong><br />
que serve para os homens de agora? A <strong>dança</strong> deve estar no Brasil ou<br />
deve ser do Brasil?” (KATZ, 1996, p.8)<br />
o corpo do novo cangaço<br />
Foram sete meses de pesquisa antes da estréia, dia 30 de maio de 1996, no Teatro do Centro<br />
Integrado de Cultura, CIC, em Florianópolis. Dividido em cenas, uma opção de organização<br />
66 Alejandro Ahmed e Karina Collaço, inversão nos figurinos e no apoio do corpo.<br />
Androginia e subversão, a bailarina Letícia Testa segura Alejandro Ahmed.<br />
Bailarino Anderson Gonçalves pendurado no andaime, onde o cenário compõe o movimento.<br />
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