You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
OS MEDOS - As crianças e os medos<br />
Em tempos não muito recuados, as crianças<br />
eram submeti<strong>da</strong>s a uma aprendizagem sob o lema<br />
do não e do medo. A palavra que mais ouviam era o<br />
não, como forma de negativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s suas acções<br />
ins-tintivas, com imposição de procedimentos com<br />
acção positiva do comportamento ensinado.<br />
Nas famílias e nas instituições particulares ou<br />
estatais, as crianças eram mol<strong>da</strong><strong>da</strong>s pela manipulação<br />
infantil do medo individual e social. Os pais<br />
ma-nipulavam os filhos através do medo, embora<br />
algu-mas manipulações fossem positivas, para<br />
que eles se comportassem segundo o que consideravam<br />
o social-mente correcto. Amedrontavam<br />
as crianças com o papão, com o homem do saco<br />
(figura do pedinte que an<strong>da</strong>va de porta em porta),<br />
com doenças, com o inferno, ou com qualquer outro<br />
medo. Alguns desses medos prolongavam-se pela<br />
vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s pessoas.<br />
Para além do medo instintivo, próprio de todos<br />
os animais, continuam a ser indicados medos<br />
às crianças, falsos ou reais, que elas interiorizam,<br />
impri-mindo-lhes um conhecimento de distinção entre<br />
o que é bom e o que é mau, antes de perceberem<br />
as dife-renças pelo raciocínio.<br />
Por exemplo, no Casal <strong>da</strong> Serra:<br />
Um dos primeiros ensinamentos era como li<strong>da</strong>r<br />
com o fogo, o lume. Não se deve chegar ao lume,<br />
porque queima. Ou seja, ministrava-se o medo<br />
do fogo (Pirofobia). Não se deve pegar no lume,<br />
porque provoca micções nocturnas involuntárias<br />
Não ir para longe <strong>da</strong> casa, porque podiam vir a<br />
tropa do João Alves (guerrilheiro liberal), a tropa <strong>da</strong><br />
Patuleia ou Dom Nuno (Nuno Alvares Pereira, que<br />
dizem ter estado na Gardunha) e que levavam as<br />
crianças que praticavam mal<strong>da</strong>des. Sobrevivências<br />
de medos antigos.<br />
Deviam comer a papa to<strong>da</strong>, porque se não<br />
comessem, metiam-lhes medo com o homem do<br />
saco, que vinha para as levar para longe.<br />
A maior parte <strong>da</strong>s vezes, as crianças não são<br />
ensina<strong>da</strong>s a li<strong>da</strong>r com o medo, mas a temê-lo. São<br />
manipula<strong>da</strong>s, como no caso do homem do saco, do<br />
papão ou de qualquer outra figura.<br />
Interessante era o medo do “Quer que é”, no<br />
Casal <strong>da</strong> Serra. Quando as mães ou as avós queriam<br />
retirar as crianças <strong>da</strong>s brincadeiras <strong>da</strong> rua, tinham<br />
uma interessante maneira de lhes provocar<br />
o medo com “O quer que é”, que vinha lá e podia<br />
108<br />
MEDICINA NA BEIRA INTERIOR DA PRÉ-HISTÓRIA AO SÉCULO XXI<br />
levá-las e fazer-lhes mal. As crianças interiorizavam<br />
esse medo, o medo de uma figura irreal atribuindolhe<br />
uma desi-gnação: o Caraculhé! Palavra arranja<strong>da</strong><br />
com a sonori-zação de o quer que é. As próprias<br />
crianças gritavam que vinha lá o Caraculhé, quando<br />
viam qualquer coisa movimentar-se à distância e<br />
corriam para casa.<br />
Segundo as crenças, para defesa do corpo,<br />
nos primeiros meses de vi<strong>da</strong>, com medo do Mau<br />
olhado, do Mal <strong>da</strong> Lua (Selenofobia), <strong>da</strong>s bruxas (Vicafobia)<br />
ou mesmo dos maus ventos (Ancraofobia),<br />
as mulheres saíam à rua com as crianças sempre<br />
envolvi<strong>da</strong>s em panos, para não serem vistas e molesta<strong>da</strong>s,<br />
e colocavam-lhes me<strong>da</strong>lhas benzi<strong>da</strong>s ao<br />
pescoço e certos amuletos.<br />
O medo do escuro<br />
O medo, como mecanismo protector, que tem<br />
por finali<strong>da</strong>de promover a integri<strong>da</strong>de do indi-víduo,<br />
sempre que este se depare com um perigo ou uma<br />
ameaça, desaparece, normalmente, quando deixa<br />
de ser funcional. Pode dizer-se que não há, propriamente,<br />
o medo do escuro (Ligofobia, Escotofobia<br />
ou Nictofobia), mas medo do que poderá existir<br />
ou acontecer no escuro. Medo porque é manifesta<br />
a su-posição de que alguma coisa há que produz<br />
emoção desconfortante.<br />
A ca<strong>da</strong> etapa do desenvolvimento humano<br />
estão associados medos típicos, como o medo do<br />
es-curo, nas crianças, um medo a<strong>da</strong>ptativo, e <strong>da</strong>s<br />
cria-turas imaginárias, como o “Quer que é” referido<br />
atrás. O medo do escuro tem o seu máximo pelos<br />
seis anos, diminuindo, depois, progressivamente,<br />
até cerca dos nove anos. Depois desta i<strong>da</strong>de, se o<br />
medo do escuro persistir já não é a<strong>da</strong>ptativo, mas<br />
desproporcionado, adquirido por modelagem, ao<br />
observar outras pesso-as a reagirem por modos<br />
medrosos. Em certos casos anormais, o medo do<br />
escuro prolonga-se pela i<strong>da</strong>de.<br />
O medo <strong>da</strong>s doenças<br />
O medo <strong>da</strong>s doenças epidémicas, ti<strong>da</strong>s co-mo<br />
pestes ou malinas, levou as populações de Al-caide,<br />
Fatela e Vale de Prazeres a não receberem, no<br />
seu meio, os fugitivos do Catrão, locali<strong>da</strong>de flagela<strong>da</strong><br />
por uma doença contagiosa, como medi<strong>da</strong> de<br />
protec-ção <strong>da</strong>s suas gentes.<br />
Com o medo de ficarem doentes (Nosofo-bia),<br />
até aos anos sessenta do século passado, mui-