Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Introdução<br />
A história cultural <strong>da</strong> deficiência física é marca<strong>da</strong><br />
pelo preconceito. Durante a I<strong>da</strong>de Média as malformações<br />
foram geralmente entendi<strong>da</strong>s como punição<br />
religiosa: o pecado <strong>da</strong> família traduzia-se em<br />
defeitos no rebento. Também era corrente a ideia de<br />
que malformações fossem presságios, anúncios de<br />
algum grande evento, fosse ele catastrófico ou auspicioso.<br />
Essa concepção parece ter-se estendido<br />
além <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Média.<br />
Devido à descoberta de varia<strong>da</strong>s formas estranhas<br />
e à acumulação de conhecimento sobre<br />
“monstros” levou a que, durante a Renascença, se<br />
reforçassem algumas teorias explicativas destes<br />
fenómenos. A Teoria <strong>da</strong>s Impressões Maternas ou<br />
Telogonia, que subsistiu durante vários séculos 3 ,<br />
baseava-se na ideia de a imaginação <strong>da</strong> mulher<br />
é uma arma poderosa capaz de transmitir ao feto<br />
coisas pensa<strong>da</strong>s, vistas ou ouvi<strong>da</strong>s. Ou seja, considerava<br />
que sendo a retina <strong>da</strong> mulher grávi<strong>da</strong> como<br />
que uma superfície sensível, na qual vem registar-se<br />
a cena que se projecta a seguir sobre a criança que<br />
vai nascer, há coisas vistas e ouvi<strong>da</strong>s que saem naturalmente<br />
pelas vias genitais, depois de deixarem<br />
marcas no filho.<br />
Uma outra forma de explicar estes moldes é<br />
considerar a extravagância do próprio útero - Teoria<br />
30<br />
MEDICINA NA BEIRA INTERIOR DA PRÉ-HISTÓRIA AO SÉCULO XXI<br />
pARALELISMOS E DIVERgÊNCIAS ENTRE AS CENTÚRIAS<br />
E O TRAITÉ DES MONSTRES ET DES PRODIGES<br />
Monstros de Paré (Paris, 1570) - Luís e Luisa nascidos em Paris em 1570<br />
Isil<strong>da</strong> Teixeira Rodrigues *<br />
dos Moldes Uterinos - segundo a qual o útero <strong>da</strong>s<br />
mulheres pode gerar muitas outras formas além <strong>da</strong><br />
humana. As teorias hipocrático galénicas de diferenciação<br />
entre o macho e a fêmea explicam a fêmea<br />
como um macho menorizado pelo frio do útero<br />
materno, que o obrigou a crescer mais devagar e,<br />
consequentemente, a nascer com os órgãos genitais<br />
retidos no interior. Dentro deste quadro, o útero,<br />
inexistente na genitália masculina, é um órgão tão<br />
anómalo que nem sequer tem lugar fixo no corpo:<br />
é apenas a gravidez que, com o peso, o segura no<br />
fundo do abdómen. Este órgão anómalo tem funções<br />
gerativas, é certo; mas devido à forma aberrante<br />
como se formou, pode não ter um controlo<br />
exactamente correcto sobre o que deve gerar 4 .<br />
Tanto o Amato Lusitano (1511 – 1568), médico<br />
renascentista português, como o seu contemporâneo<br />
francês e cirurgião <strong>da</strong> casa real, Amboise Paré<br />
(1509 – 1590) escreveram e relataram, nas suas<br />
obras, casos de monstruosi<strong>da</strong>des gera<strong>da</strong>s nos úteros<br />
<strong>da</strong>s mulheres.<br />
As Centúrias 5 de Amato Lusitano desviam-se<br />
<strong>da</strong> estrutura clássica dos tratados médicos renascentistas,<br />
adoptando antes uma organização de<br />
matérias que virá a tornar-se prática corrente a partir<br />
do Século XVII: o estilo “diário de bordo”, sem se-