Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
34<br />
«Quando escrevia isto, chegou a Ancona<br />
um rapaz de Ilíria, de seis anos de i<strong>da</strong>de,<br />
e muito boa aparência, com todos os membros<br />
exactos e perfeitos, tendo no entanto em<br />
si um monstro, visto que desde o umbigo até<br />
ao tórax apresentava um outro corpúsculo de<br />
criança, sem cabeça, mas com dois braços e<br />
duas pernas imóveis (...). Era este rapaz a admiração<br />
de to<strong>da</strong> a gente e a tal ponto que os<br />
pais o exibiam por to<strong>da</strong> a Itália, para arranjar<br />
muito dinheiro» 21 .<br />
Este é, abertamente, um dos territórios de rectaguar<strong>da</strong>,<br />
com que autores imbuídos do senso comum<br />
do tempo, como Ambroise Paré, se deleitam<br />
e deleitam as audiências. A exibição pública, tanto<br />
para a plebe, como para as élites, de deformi<strong>da</strong>des<br />
e monstruosi<strong>da</strong>des, a troco de dinheiro é uma tradição<br />
tão antiga na Europa, que Paré se sente compelido<br />
a dedicar uma passagem substancial <strong>da</strong> sua<br />
obra ao assunto, apontando, no seu inventário preliminar<br />
<strong>da</strong>s trezes causas fun<strong>da</strong>mentais que levam<br />
ao aparecimento de monstros ou prodígios, a 12ª<br />
causa como sendo<br />
«o artifício de pedintes maliciosos e sem<br />
escrúpulos» 22 .<br />
Um dos homens em que Paré mais fun<strong>da</strong>menta<br />
o Monstres et Prodiges, Jean Boaistuau <strong>23</strong> , descreveu<br />
o assunto <strong>da</strong> seguinte forma:<br />
«Estes peregrinos disfarçados, ou melhor,<br />
estes hipócritas absolutos, que não estu<strong>da</strong>m<br />
mais que a filosofia de Satanás, assim<br />
que os seus filhos nascem, enquanto a sua<br />
pele e ossos são tenros e flexíveis, requerendo<br />
pouca força, tratam de partir-lhes os braços,<br />
esmagar-lhes as pernas e de inchar-lhes o estômago<br />
com algum pó artificial, desfigurando<br />
os seus narizes ou outras partes <strong>da</strong>s suas caras,<br />
e, por vezes, vazando-lhes os olhos, tudo<br />
para fazerem parecerem monstruosos».<br />
Depois destas advertências preliminares, Paré<br />
lista uma série considerável de “falsos monstros”,<br />
adjectivando-os com um léxico negativo vastíssimo<br />
e descrevendo em grande detalhe as penas que sofreram<br />
ao serem descobertos.<br />
Mas, se Amato passou pela retaguar<strong>da</strong> ao re-<br />
MEDICINA NA BEIRA INTERIOR DA PRÉ-HISTÓRIA AO SÉCULO XXI<br />
ferir o hábito antiquíssimo e sobejamente documentado,<br />
de exibição pública de deformi<strong>da</strong>des a troco<br />
de dinheiro, não deixa, por isso, de rematar a cura<br />
com um salto para a vanguar<strong>da</strong> ao referir um dos<br />
pioneiros do estudo de monstros, como casos clínicos<br />
e não como prodígios <strong>da</strong> natureza.<br />
Conclusões<br />
Ambroise Paré tem o mérito de ser o primeiro<br />
cirurgião a tentar, de alguma forma, sistematizar os<br />
casos então considerados de teratologia humana,<br />
mas fá-lo dentro de um quadro medieval. Numa linha<br />
cola<strong>da</strong> à literatura de prodígios, que se propagou<br />
por to<strong>da</strong> a I<strong>da</strong>de Média, apresenta os “monstros”<br />
como casos de sinal divino, presságio ou<br />
mensagem.<br />
Amato Lusitano não se distancia radicalmente<br />
de Paré e apresenta, também ele, alguns casos<br />
de “monstros”, dispersos ao longo <strong>da</strong>s Centúrias.<br />
Passa pela retaguar<strong>da</strong> ao referir os casos de monstros,<br />
aparentemente inexplicáveis, mas remata as<br />
curas com saltos para a vanguar<strong>da</strong>, ao apresentálos<br />
como casos clínicos e não como prodígios <strong>da</strong><br />
Natureza. Note-se que esta posição só começou a<br />
delinear-se, com mais clareza, no meio académico,<br />
no Século XVII e, para o senso comum, ain<strong>da</strong> constituía<br />
a regra durante o Século XVIII.<br />
BIBLIOGRAFIA<br />
— Boaistuau, J., <strong>História</strong>s Prodigiosas, Damaia: Tertúlia do Livro,<br />
edição sem <strong>da</strong>ta.<br />
— Copenhaver, Brian, Natural Magic, Hermetism, and Ocultism,<br />
In Early Modern Science In Reappraisales os the Scientific Revolution,<br />
Cambridge: Cambridge University Press, 1990, pp. 261-302.<br />
— Lopes Dias, José, Dr. João Rodrigues de Castelo Branco -<br />
Amato Lusitano. Ensaio Bio-Biográfico, Lisboa: Congresso Da<br />
Activi<strong>da</strong>de Científica Portuguesa, pp. 92-178<br />
— Lusitano, Amato, Centúrias de Curas <strong>Medicina</strong>is, Tradução de<br />
Firmino Crespo, Lisboa: Universi<strong>da</strong>de Nova de Lisboa, 1980.<br />
— Lvsitani, Amati, Curationum <strong>Medicina</strong>lium centuriae septem,<br />
varae multiplicique rerum cognitione referte; quibus praemissa est<br />
commentatio de introitu medici ad agrotantem, deque crisi et diebus<br />
decretoriis, Bordéus, 1620.<br />
— Paré, Ambroise, Monsters and Marvels, Tradução, introdução e<br />
notas de Janis L. Pallister, Chicago: University of Chicago Press, 1982.<br />
— Paré, Ambroise, Monstruos y prodígios, Com Introduccion, traduccion<br />
y notas de Ignacio Malaxecheverría, Ediciones Siruela.<br />
1987.<br />
— Park, K. e Daston, L., Unnatural Conceptions: the study of<br />
monsters in Sixteenth and Seventeenth-Century France and England,<br />
Past and Present, 1981, 92: 20-54.<br />
— Pinto-Correia, Clara, (1998), O Ovário de Eva, Lisboa: Relógio<br />
D’ Água.