Weekend 1195 : Plano 56 : 1 : P.gina 1 - Económico
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O MEU OLHAR<br />
João Lobo Antunes<br />
Conflito<br />
de interesses<br />
Há alguns anos já, apresentou-se<br />
num concurso académiconaminhaFaculdade,<br />
alguém com quem tinha<br />
cortado relações por ter cometido<br />
o que eu entendi ser<br />
um imperdoável pecado de carácter. O dilema,<br />
se aceitasse fazer parte do júri, era<br />
para mim complicado: iria ser mais severo<br />
no juízo porque, simplesmente, não o estimava?<br />
E se o aprovasse seria porque, não o<br />
estimando e temendo cometer uma injustiça,<br />
iria ser mais brando na minha avaliação?<br />
Acabei por decidir não integrar o júri, pois<br />
ainda na Universidade de Columbia eu<br />
aprendera que uma das obrigações mais sagradasdaUniversidadeéojuízoindependente<br />
do mérito.<br />
Maistarde,comoPresidentedoConselho<br />
Científico da minha Faculdade consegui<br />
acabar com o costume de os orientadores<br />
das teses de doutoramento e, muitas vezes,<br />
co-autores dos trabalhos científicos que as<br />
constituíam, serem os arguentes na respectiva<br />
discussão.<br />
E, já agora, uma outra história académica.<br />
Quando me apresentei a concurso para<br />
Professor Agregado, terminadas as provas,<br />
o júri reuniu-se para uma inesperadamente<br />
longa deliberação. Depois lá me chamaram,<br />
cumprimentaram-me efusivamente e pousámos<br />
todos, risonhamente, para a fotografia<br />
tradicional. Porque teriam demorado<br />
tanto tempo, interrogava-me? Explicaram-me<br />
depois que tinha surgido na votação<br />
uma bola preta. O Professor Jaime Celestino<br />
da Costa, decano de Cirurgia, argumentara<br />
então que teria decerto havido engano,<br />
pois eu não merecia tal bola e propôs<br />
nova votação. Todos concordaram. Só que,<br />
desta vez, surgiram duas bolas pretas: uma<br />
certamente para mim e a outra para o professor<br />
que sugerira segunda votação. Enfim,<br />
um estupendo exemplo de injustiça académica,<br />
pelo menos na segunda ronda...<br />
Perguntarão os leitores onde me irá levar<br />
esta breve incursão nos meandros da justiça<br />
universitária. A razão foi a revelação, muito<br />
comentada nos ‘media’, de um advogado de<br />
uma das personagens envolvidas no caso<br />
chamado de “Face Oculta”, ser membro do<br />
Conselho Superior da Magistratura que tem<br />
como missão, se bem percebi, avaliar os juízes<br />
e assim determinar a sua progressão na<br />
carreira. Porque tenho escrito e pregado sobre<br />
a questão do conflito de interesses a diversas<br />
audiências, sempre um pouco incomodadas<br />
pelo tema, e porque também já me<br />
atrevi a falar sobre a profissão da magistratura<br />
e da advocacia e o que de comum têm<br />
com a medicina, gostaria de alinhar algumas<br />
reflexões sobre o assunto.<br />
Qualquer profissão é essencialmente um<br />
contrato social que obriga à protecção de<br />
pessoas e valores vulneráveis por gente especialmente<br />
preparada para tal. No caso do<br />
médico as pessoas são os doentes e os valores<br />
a saúde; no caso dos juízes e advogados<br />
as pessoas são aquelas que a eles recorrem,<br />
clientes, queixosos, arguidos ou réus, e os<br />
valores são os da justiça. Estes são, eviden-<br />
temente, os compromissos primários nestas<br />
profissões.<br />
O conflito de interesses surge sempre<br />
que um indivíduo ou uma instituição têm<br />
um compromisso primário e, simultaneamente,<br />
um compromisso secundário que<br />
pode anular o primeiro, ou é suficientemente<br />
tentador para criar a possibilidade<br />
ou a aparência de que isso pode acontecer.<br />
Ou seja, o interesse primário pode ser indevidamente<br />
influenciado por um interesse<br />
secundário.<br />
É importante sublinhar que o conflito de<br />
interesses é um acontecimento e não um<br />
tipo de comportamento sistemático e,<br />
como disse, pode quedar-se simplesmente<br />
pela aparência. No caso de um juiz, o compromisso<br />
primário pode entrar em conflito<br />
com um interesse secundário como, por<br />
exemplo, o de ascender na carreira. No<br />
caso do advogado, importa-lhe, em primeiro<br />
lugar, a defesa dos interesses do seu<br />
cliente e, secundariamente, a avaliação<br />
isenta do juiz cuja progressão profissional<br />
está, em certa medida, reduzida que seja,<br />
dependente da sua avaliação. É evidente<br />
que o conflito extinguir-se-ia imediatamente,<br />
se os advogados no “activo” não<br />
integrassem o tal Conselho.<br />
No caso da medicina o que está em causa<br />
são fundamentalmente os conflitos de natureza<br />
financeira, não só pelas benesses e<br />
prebendas que os médicos recebem da indústria<br />
farmacêutica, que podem condicionar<br />
os seus hábitos prescritivos, mas também<br />
porque são eles próprios, cada vez<br />
mais, investidores no florescente negócio<br />
da saúde. Por exemplo, há evidência na literatura<br />
norte-americana, de que as clínicas<br />
que são propriedade de médicos recebem<br />
mais 50% de visitas por doentes, naturalmente,<br />
desses mesmos médicos.<br />
A atenção crescente a esta área deve-se<br />
Nunca foi tão<br />
complexo, tão<br />
arriscado e tão<br />
difícil ser juiz como<br />
hoje. Tudo o que<br />
de alguma forma<br />
possa limitar<br />
ou condicionar<br />
a independência<br />
do magistrado<br />
degrada o sentido<br />
nobilíssimo de uma<br />
profissão que é, não<br />
o devemos esquecer,<br />
eminentemente<br />
moral<br />
Outlook | Sábado, 5.12.2009 | 11<br />
também, entre outros factores, a justificadas<br />
suspeitas de enviesamento na apreciação<br />
dos resultados de ensaios com novos<br />
fármacos, quando os investigadores têm laços<br />
económicos com as empresas que produzem<br />
os medicamentos em causa.<br />
Em relação às ofertas da indústria, mesmo<br />
àquelas de valor quase insignificante,<br />
quem estuda estas matérias chama a atenção<br />
para o facto de o objectivo da dádiva ser<br />
gravar a identidade do dador na mente de<br />
quem a recebe, e criar, aberta ou subliminarmente,<br />
a obrigação de retribuir, ou seja,<br />
de reciprocidade. Por isso nos Estados Unidos,<br />
há quem proponha uma tolerância zero<br />
em relação a qualquer dádiva, e a comunicação<br />
pública na ‘net’ de quanto cada firma<br />
paga aos médicos como palestrantes, consultores,<br />
etc. Nesta área o progresso entre<br />
nós tem sido embaraçosamente lento, mas<br />
estou certo que, mas mais tarde ou mais cedo,<br />
a legislação europeia irá disciplinar uma<br />
área que é um dos segredos mais mal guardados<br />
da profissão.<br />
Diga-se, em abono da verdade, que o<br />
conflitodeinteressesestápresenteemtodas<br />
as profissões, desde deputados a árbitros de<br />
futebol. Esta é matéria delicada no seio de<br />
uma sociedade cada vez mais vigilante que<br />
exige bom senso e lucidez para desarmar o<br />
risco que representa, mesmo apenas na<br />
mera aparência que sugere. Ignorar a questão,<br />
escondê-la, mistificá-la, apenas serve<br />
para tornar mais palpável a realidade da sua<br />
existência, num tempo de sistemática desconfiança.<br />
Como escrevi já, nunca foi tão complexo,<br />
tão arriscado e tão difícil ser juiz como hoje.<br />
Tudooquedealgumaformapossalimitarou<br />
condicionar a independência do magistrado<br />
degrada o sentido nobilíssimo de uma<br />
profissão que é, não o devemos esquecer,<br />
eminentemente moral.