Weekend 1195 : Plano 56 : 1 : P.gina 1 - Económico
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Matosinhos à solta<br />
Era uma cidade satélite que cheirava a peixe.<br />
Mas isso era dantes. Agora dá lições ao Porto sobre<br />
como promover a cultura sem cair no disparate.<br />
Um caso de sucesso<br />
Até há uns anos, Matosinhos era a cidade<br />
dos pescadores e das indústrias das<br />
conservas. Depois passou a ser a cidade<br />
da refinaria da Galp. Mais tarde, transformou-se<br />
numa espécie de deserto urbano na<br />
periferia do Porto, onde ninguém queria viver.<br />
Para abreviar: actualmente, Matosinhos<br />
éacidadedoGrandePortoondeaculturaé<br />
mais bem tratada – tem até aparentemente<br />
um lugar próprio, independente, sem ser<br />
umaparentepobredenada–eumexemplo<br />
que, mais que ser estudado, deve ser seguido.<br />
Paraabreviaraindamais:apolíticaculturalde<br />
Matosinhos é a política cultural que o Porto<br />
devia ter, se se desse o caso, que não dá, de na<br />
câmara da segunda maior cidade do país alguém<br />
saber o que raio isso é.<br />
É por isso que, nos próximos dias 7 e 8 de<br />
Dezembro, a Câmara de Matosinhos volta a<br />
cobrir o Porto de vergonha, ao organizar,<br />
através da biblioteca municipal, mais uma<br />
ediçãodaFestadaPoesia.NoPorto,poesiasão<br />
aquelas manchas de texto que não chegam ao<br />
fimdaspá<strong>gina</strong>s,quequaseninguémlêequem<br />
lê não percebe e quem percebe tem no mínimo<br />
um passado duvidoso de bombista; em<br />
Matosinhos é ponto de partida para um encontro<br />
com os escritores João Pedro Mésseder,<br />
José Jorge Letria, José Fanha, Valter Hugo<br />
mãe, João Luís Barreto Guimarães, José Mário<br />
Silva, Ana Luísa Amaral, Manuel António Pina<br />
e Isabel Pires de Lima.<br />
MasaFestadaPoesia–certamequecomoa<br />
própria, a poesia, não é propriamente estanque<br />
– tem muitas coisas que até parece que<br />
não são poesia. Para além dos encontros com<br />
escritores há encontros com músicos (Sam<br />
the Kid, New Max e NBC e um concerto com<br />
Pedro Moutinho); uma exposição de ilustrações;<br />
poesia dita por Victor de Sousa; teatro e<br />
espectáculos (entre os quais “Jorge de Sena o<br />
regresso a casa”); uma oficina de artes com o<br />
muito desconstrutivo nome “Brincar e pintar<br />
Florbela”, que há-de ser a Espanca, que por<br />
ali andou, por Matosinhos, nas suas paixões<br />
de demónio; e uma prova de poemas, que, de<br />
propósito, aqui não se diz o que é.<br />
O tal espectáculo “Jorge de Sena: o regresso<br />
a casa” vale a pena ser levado em consideração:<br />
é uma homenagem ao poeta, ensaísta,<br />
pensador e escritor – um dos mais brilhantes,<br />
lúcidos e esquecidos do país – numa performance<br />
de poesia musicada, com José Jorge<br />
Letria, Guto Lucena e António Palma, assinalando<br />
os 90 anos do seu nascimento e os 50 da<br />
sua partida para o exílio – que nunca mais<br />
acabou, ou não fosse ele exactamente lúcido.<br />
ANTÓNIO FREITAS DE SOUSA<br />
Outlook | Sábado, 5.12.2009 | 21<br />
A MINHA FICÇÃO<br />
Patrícia Reis<br />
O nevoeiro do futuro<br />
O homem desceu a calçada com o jornal debaixo do<br />
braço. Tinha feito várias anotações e analisado o<br />
suplemento de emprego com olhos de lince,<br />
conhecedor e experiente destas coisas. Começou por<br />
riscar todos os anúncios que indicavam idade. Não<br />
valeria a pena ir por aí. Quando tomou o café às sete e<br />
quarenta e cinco havia um nevoeiro em Lisboa que lhe<br />
lembrou a aldeia, outros tempos, uma vida que fora dele<br />
e que hoje, de forma algo estranha, lhe parece alheia.<br />
Na aldeia, em miúdo, correndo com os cães e trincando<br />
pão duro do dia anterior, o futuro não o preocupava.<br />
O futuro não existia simplesmente. Agora, depois de<br />
cinquenta e seis anos a fazer coisas tão diferentes na<br />
grande cidade, o futuro era o dia de amanhã, o levantar<br />
à mesma hora, a hora da vergonha, e não ter para onde<br />
ir. A mulher a arrumar as coisas na cozinha, pronta<br />
para ir para casa de uns senhores lavar e esfregar,<br />
educar uma criança pequena, mimada e demasiado<br />
pesada para andar ao colo. Sete euros à hora, quatro<br />
vezes por semana, já que a mãe da criança a deixava<br />
com os avós às sextas. Daria jeito esse dia extra, mas<br />
nada a fazer, as coisas são o que são. Para não a fazer<br />
perder mais cabelo, para não a levar a tomar mais<br />
medicamentos, ela sempre a caminho da médica de<br />
família, com tantos queixumes, esqueceu-se de lhe<br />
dizer que estava no desemprego desde o início do<br />
Verão. Ponderou na conversa e concluiu que de nada<br />
servia. Alguma coisa apareceria, ele safar-se-ia como<br />
sempre e ela teria menos uma preocupação, ela sempre<br />
com o miúdo às costas e um cesto de roupa para<br />
engomar de segunda à quinta.<br />
O homem que desce a calçada já não se importava com<br />
nada. Das sete e quarenta e cinco às seis da tarde, o<br />
horário do costume, da imobiliária onde esteve os<br />
últimos dez anos e que, de repente, fechou portas por<br />
ser ilegal, por não existirem nem os papéis nem as<br />
cunhas certas, o homem vai vendo o jornal e os<br />
empregos que existem: director de marketing, gestor<br />
com MBA, jovem licenciado para a área da<br />
Publicidade... Impossibilidades que ele não vislumbrou<br />
quando corria pelo nevoeiro da aldeia, já sem sapatos e<br />
sem saber nada do futuro. Podia, hoje à noite, contar<br />
tudo à mulher, em meio tom, depois da novela. Mas<br />
para quê? Agora, tão próximo do Natal, o melhor será<br />
ficar calado e não dizer nada. Se não disser nada talvez<br />
passe. Quem sabe?<br />
Escritora