portas do Reino Encantado. Rodeadas por outras menores, duas pedras enormesadquiriam um aspecto singular. Dentre elas, D. Sebastião surgiria frente aos olhos dasquase trezentas pessoas que ali se encontravam acampadas.(...) João Ferreira pregava, com uma grande coroa na cabeça, pois seintitulava Rei do ajuntamento. Afirmava que o Reino só desencantariaà custa de muito sangue; mas quando D. Sebastião surgisse, aspessoas sacrificadas “se eram pretas, voltavam alvas como a lua,imortais, ricas e poderosas; se eram velhas, vinham moças, e damesma forma ricas, poderosas e imortais”.A profecia teve grande aceitação entre os habitantes da zona que“não obstante a sua grande fertilidade e excelência para quase todaespécie de agricultura, tinha apenas uma meia dúzia de famílias, quemoravam em choupanas de palha, e trabalhavam próximas umas dasoutras...” Vaqueiros da redondeza acorreram, além dostrabalhadores da roça, formando uma espécie de povoado em tornodas pedras, uma das quais, possuindo enorme cavidade natural,servia de local do culto e era denominada a Casa Santa;encarapitado noutra, o Rei pregava diariamente, anunciandoacontecimentos portentosos. (...) Finalmente, marcou João Ferreira odia para iniciarem os sacrifícios necessários “a quebrar de uma vezeste cruel encantamento”, e a 14 de maio de 1838 seu próprio pai foio primeiro que correu a se oferecer a Carlos Vieira, que, com umfacão afiado, lhe cortou cerce a cabeça. Começou um morticínioinenarrável, que prosseguiu nos dias 15 e 16, com a turba em estadode grande exaltação. No fim do terceiro dia, as bases das duas torrestinham sido regadas com sangue de trinta crianças, doze homens,onze mulheres e catorze cães.Na manhã de 17, foi sacrificado o próprio Rei, tomando seu lugar ocunhado Pedro Antônio; e como no local o ar se tornara irrespirável,dada a decomposição dos cadáveres que por ali jaziam, o novo chefeordenou a transferência do acampamento para mais longe. Partiramtodos em procissão dançante, seminus, com o Rei à frente cingidogrande coroa de cipós. Subitamente depararam com forte contingenteque vinha em sentido contrário e que contra eles abriu fogo(QUEIROZ, 1976, p. 223).Como um verdadeiro Diasparagmós 4 , as imagens levantadas aqui encerram cenasgrotescas de suspense e horror que funcionam como uma espécie de força motrizsubjacente, dentro do entrecho de Pedra Bonita, invocada para explicar o marasmo e amiséria que assolam a vila de Açu e as desgraças ocorridas à família Vieira, que vive nosítio Araticum, em Pedra Bonita. Note-se que não fora a intenção de Lins do Regoconstruir um romance histórico, mas de tomar o assunto como pano de fundo “no ato dese transformar em mito, pesadelo agourento a pairar sobre toda uma região” (RÓNAI,4 De acordo com Junito Brandão, Diasparagmós do verbo diasparássein, do grego, significa “despedaçar”.Trata-se, em termos religiosos, de um rito de dilaceramento de uma vítima sacrificial (touro, bode, etc.),“viva ou ainda palpitante”, da qual o sangue e a carne crua são consumidos imediatamente.Ponta de Lança, São Cristóvão v.2, n. 3, out. 2008 ‐ abr. 2009. 38
1979: XXI). Assim, nas páginas iniciais, o narrador informa: “Há quase um século quecorrera sangue pelos seus campos, sangue de gente, sangue derramado para embeber aterra em nome de Deus. Aquilo pesava na existência da vila como um crime nefando,pesava no destino de gerações e gerações” (REGO, 1979, p. 7).O cenário escolhido pelo autor para compor a trama da obra é a vila de Açu e é pormeio da personagem protagonista Antonio Bento, um rapaz de vinte anos, que o leitorvai sendo, aos poucos, levado a conhecer Pedra Bonita e o atroz passado que aassombra. Em decorrência da terrível seca de 1904, a família Vieira entrega o filho maisnovo para ser criado pelo Padre Amâncio. Como nasceu em Pedra Bonita, o menino, dainfância até o momento presente da narrativa, é vítima do desprezo dos de Açu, aindaque não tenha conhecimento dos motivos desse desdém. Assim, é ao seu entorno que semovimentam as personagens, aprisionadas pelas diversas misérias que lhe imprimem acondição social desumana: paixões, manias, ignorâncias, histerias, etc.Padre Amâncio parte em uma viagem de três meses a Recife para acompanhar o bispoem visita pastoral, e Antonio Bento deve passar esse período em Pedra Bonita. É lá, nacompanhia do irmão Domício, que Bento visita o velho curandeiro Zé Pedro,conhecendo a história do Reino Encantado e toda a atmosfera mística que ainda aenvolve. As desgraças de Açu recaem sobre essa fábula; e, como pode ser verificado nofragmento abaixo, as condições de vida da família de Bento também nela encontramrazão.– Menino, tu me disseste que era filho de Bentão do Araticum. Poisfica sabendo. O homem que correu pra ensinar o caminho à tropa foium de tua gente, um Vieira. Tu não tem culpa de nada. Mas Deus nãoesquece. Tu viste como morreu teu avô Aparício. Aqui ele veio mefalar pra fazer reza. Aqui ele chorou pedindo perdão como menino.Ele que era chefe de cangaceiro, como tu deve saber. Teu pai Bentãoé outro infeliz. Tu não tem culpa não, menino. Eu estou contando porcontar. Bentão não fala com ninguém. Tem terra com água corrente enão vai pra diante. Casou-se com mulher bonita, e a mulher ficoufeia. Cria, e a criação não cresce. Aplanta e não enriquece. Tu sabe oque é? É o sangue do parente. É o sangue de Judas nas veias. Sanguede Judas, menino, sangue de Judas. Teu irmão Aparício já tevecomigo. Falou de fechar o corpo. Rezei pra ele, sabendo que nãotinha força. O sangue de Judas, menino (REGO, 1979, p. 119-120).Os demais episódios funestos que vão acontecendo à família Vieira, ao longo da fábula,também são atribuídos à denúncia feita pelo antepassado: Aparício, filho mais velho deBentão, mata um praça e entra para o cangaço; o sítio é invadido pela tropa da vila dePonta de Lança, São Cristóvão v.2, n. 3, out. 2008 ‐ abr. 2009. 39
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