Da mesma forma Rosário, rotulada dona Senhora, aparece numa posição semelhante ade Cassiano, pois chega ao interior sergipano com uma vivência da capital alagoana,considerada, por ela, um local avançado em relação a Sergipe. De modo que esses doisnarradores-personagens têm comportamentos que os fazem estar o tempo todo no entrelugarda cultura, na medida em que o entre-lugar é o espaço da diferença, danegociação, onde mesmo as identidades podadas estão num contínuo processo deformação e, por isso mesmo, nesse espaço, o sujeito questiona o seu pertencimentoidentitário, porque “os entre-lugares fornecem o terreno para a elaboração de estratégiasde subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade epostos inovadores de colaboração e contestação”(BHABHA, 2007, p.20).Noutras palavras, é no entre-lugar da cultura que o sujeito analisa o local com os valorese com a visão de fora, do estrangeiro, do diferente, do intelectual que vivenciou outras ediferentes experiências e, por isso, avalia os valores culturais de um ponto de vistadiferenciado. Reside aí a razão de, nessas posições e nesses espaços de estranhamentocultural, os sujeitos serem formados e pensarem os outros indivíduos, a partir desselugar de deslocamento sócio-cultural. Nesse espaço, o sujeito tanto pode conquistar aliberdade de construir as suas identidades na relação do eu com o outro, quanto deescolher se é conveniente ou não pertencer a tal cultura ou a tais valores culturais,segundo o faz Cassiano, ao se afastar das práticas locais comuns no trato com osempregados e as pessoas em geral.No caso de dona Senhora, inicialmente uma mulher à frente do seu tempo, visto que, noinício do século XX, escolhe as amizades e a pessoa com quem irá se casar,renunciando ao sonho de bailarina do Teatro Santa Isabel e ao futuro de mulherindependente, não por uma promessa de amor romântico, mas por uma decisãosupostamente madura de casar-se por opção, por paixão e viver outras experiênciasalém do seu nicho cultural. Essa atitude, aliás, escandaliza as primas do esposo e associalites de Aracaju, da primeira metade desse século XX e, conseqüentemente, doponto-de-vista social, coloca-a nas categoria de elemento cultural estranho, estrangeirano próprio país.Além disso, a partir dessa escolha e suas conseqüências, dona Senhora olha a família domarido, em especial as mulheres, de uma posição privilegiada: a de alguém que nãoapenas trocou a posição de mulher pela posição de mãe, mas de uma mulher que ousousimplesmente viver e pagar o preço de suas decisões, o que, conforme já foiPonta de Lança, São Cristóvão v.2, n. 3, out. 2008 ‐ abr. 2009. 54
mencionado anteriormente, ocorreu primeiro quando foi destituída do seu próprio nomee, com isso da sua personalidade transgressora, e depois, quando o patrimônio e aliberdade lhe são tomados, culminando com o seu internato e morte no hospício: umpreço alto demais pago pela ruptura para com o status quo social destinado às mulheresda época.A ruptura, é bom lembrar, deu-se ao escandalizar ao marido com o seu desejo de fêmea,considerado impróprio aos padrões da época. Para os antigos valores de pesocolonial/patriarcal, a mulher branca é destinada para o casamento, a mulata para o sexoe a negra para o trabalho (cf. FREIRE, 2006). Então, Romeu Barroso considerou umultraje, à tradição patriarcal e familiar, uma mulher branca, mãe e esposa, comportar-see querer exercer também a função de um mulata: depositária do desejo e do prazer doseu homem. Outras rupturas de dona Senhora ocorrem tanto ao tratar o cunhado com odesdém que lhe custou a liberdade, quanto, ao transmitir à Arcanja o ideal de liberdadee independência cultivado durante quase toda a vida. Arcanja, a sobrinha e nora damatriarca dos Barrosos, posteriormente, passa a ser tanto a mulher forte e implacável —aos olhos do marido e dos agregados da casa e da fazenda — quanto a lei, odirecionamento, o exemplo, o porto seguro do filho Remígio e do próprio Cassiano.Arcanja vive a ruptura no plano sexual, ao ter a lucidez e a consciência de não querer terhomem como dono; com isso, permite-se viver um relacionamento cheio de tara, peloprazer de desafiar os cuidados e as regras do pai, pelo desafio de sair de casa e ter umaprofissão. Ainda rompe com as regras familiares pré-estabelecidas, ao tomar o primoCassiano por esposo e retornar à família numa nova posição: a de matriarca dosBarrosos, àquela a quem, numa nova situação, detém a posição de chefe da família deum marido vivo, numa época em que as mulheres ainda não tinham se libertado dasamarras do poder patriarcal.No entanto, essa ruptura de Arcanja constitui-se numa ruptura e numa permanênciadentro do status quo social. Ruptura com o estabelecido, porque Arcanja não é tomadaem casamento, mas toma um homem em casamento (uma lídima reviravolta nos valoresdo patriarcado!). Permanência, com os valores estabelecidos, porque, conformesabemos, os casamentos entre parentes, tão comuns no Brasil do tempo da escravidão enas localidades interioranas, ajudaram a manter as terras e o patrimônio de algumasfamílias dentro do próprio clã familiar. Todavia, sabe-se que esses casamentos entrefamiliares,Ponta de Lança, São Cristóvão v.2, n. 3, out. 2008 ‐ abr. 2009. 55
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