Agindo em nome da Justiça, a primeira providência séria que Belisáriotomou foi meter tia Senhora numa camisa-de-força e empurrá-la num vaporendereçada a um hospício do Recife. Tanto a pegaram de mau jeito, que lhefaturaram a munheca da mão direita. A hora do embarque foi um drama damais nefana impiedade. Esgadanhada, vertendo catarro, lágrimas e baba, tiaSenhora gritava socorro, se retorcendo em vão pra se soltar, clamando aovento que ia morrer afogada. A quanta desgraça a gente tem de agüentar! Eainda sem se mover! Uma miséria de Calibre, se representando desumana afindar assim funesta, só acontece mesmo com uma viúva desamparada eperdida que não aprendeu a se reger (CDS, p. 147).Esse episódio grotesco cala definitivamente a voz de dona Senhora, em seguida, repetesenuma proporção menor, mas não menos autoritária, em relação ao jovem CassianoBarroso, filho de Romeu e Senhora, quando Belisário usurpa a posição de líder dosBarrosos e coloca Cassiano num internato no Rio de Janeiro. Em decorrência disso, onovo patriarca assume a gerência dos negócios da família e, conseqüentemente, apossasedo dinheiro e do prestígio que, por direito, seria de Cassiano. Daí, o que temos é umapequena amostra de como muitas fortunas foram formadas no Brasil: pela força e pelaposse indevida.O interessante é o fato de que dentro desse contexto familiar, Mané Piaba é o elementoperiférico da narrativa, despercebido, mas a testemunha ocular de sessenta anos dehistória de uma família que conheceu o auge e a derrocada do próprio poderioeconômico e do prestígio social. Decerto que muito da história dos Barrosos é costuradapela memória testemunhal de Mané Piaba, pois este representa, na narrativa, a voz dosvelhos funcionários da fazenda e da casa da cidade, os quais presenciaram a grandeza ea derrocada dos descendentes de Romeu Barroso. No entanto, no caso de Mané Piaba, oque nos interessa é o espaço que lhe foi reservado na casa. O espaço de Mané Piaba nacasa dos Barrosos é o da condição de empregado-agregado.Acostumado a viver sob a suposta posição de Romeu Barroso, aquele indivíduo revoltasecom o tratamento que Cassiano Barroso lhe destina, quando este fica adulto e retornaà fazenda para assumir o que restou dos bens da família. Isso porque ainda naconcepção do empregado da década de 60, o patrão conversar com o funcionário eramais importante do que propriamente este receber o seu salário em dia, o que tantodenota uma relação escravocrata das relações de trabalho, quanto reforça a premissa deque a “linguagem literária é um elemento constitutivo da prática social material ePonta de Lança, São Cristóvão v.2, n. 3, out. 2008 ‐ abr. 2009. 52
prática material é um processo no qual muitas atividades complexas sãorealizadas”(WILLIAMS, 1979, p.165), inclusive as de ordem políticas e econômicas.É claro que, nessa prática econômica, a superestrutura está presente, pois as idéias queos indivíduos fazem de si próprios e das relações sociais são, em muito, condicionadaspela sua realidade material. Com isso, ao longo do processo histórico das relações detrabalho, o que mais tem ocorrido na sociedade brasileira são os patrões usarem de umasuposta amizade com os empregados para dominá-los e, com isso, negarem-lhes algunsdireitos trabalhistas. Essa prática aparece de maneira tão sutil nas relações sócioeconômicasque, quando um empregador não adota essa forma patriarcal de dominação,o próprio empregado sente-se numa condição desfavorecida e desprestigiada.Nas condições da narrativa Cartilha do silêncio, esse estado de coisas está muito bemcolocado, pois, os empregados acabam sendo a extensão do domínio da casa.Conseqüentemente, da mesma forma que o “chefe” da família se arroga ao direito decontrolar o comportamento das mulheres, também o sentem no similar direito decontrolar a vida dos empregados. Isso só prova que estrutura e superestrutura, economiae sistema de idéias caminham juntos, a ponto de um interagir com o outro, uminfluenciar o outro, ou ainda, um condicionar o outro. Daí, na realidade empírica, osempregados sentirem-se confortáveis dentro de uma relação de suposta amizade entrepatrão e empregado.O texto literário enquanto mediação dessa realidade reproduz essas relações sociaistraçadas pela política da cultura do favor. Não é à toa que o narrador-personagem ManéPiaba sente saudades do tempo em que o patrão Romeu conversava com ele; da mesmaforma, reconhecerá esse tempo na terceira geração, configurada em Remígio Barroso,uma espécie de reestruturador do que sobrou do patrimônio dos Barrosos.No entanto, há de se entender a não adaptação de Cassiano Barroso ao modo de vida datradição desse clã familiar pelo fato de ele ter vivido boa parte da sua juventude fora decasa e numa grande cidade, onde certamente as relações de poder são postas em outraordem: longe da intimidade com os funcionários. Nesse sentido, quando Cassianoretorna à velha casa dos Barrosos, ele o faz como o olhar de um estrangeiro, olhar esseintelectualizado que analisa a tudo e a todos de cima, de uma posição supostamenteprivilegiada de quem teve outras experiências e que, em decorrência disso, está numaposição fronteiriça entre o local e o nacional.Ponta de Lança, São Cristóvão v.2, n. 3, out. 2008 ‐ abr. 2009. 53
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