Ensaio sobre o Sacrifício - WESLEY CARVALHO
Ensaio sobre o Sacrifício - WESLEY CARVALHO
Ensaio sobre o Sacrifício - WESLEY CARVALHO
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
38<br />
torno de todas as vítimas, com ou sem o fogo. Era o deus Agni<br />
que cercava o animal por todos os lados, sacralizando-o; sepa<br />
rando-o.177 Conquanto assim avançasse no mundo dos deuses,<br />
a vítima devia permanecer em contato com o mundo dos ho<br />
mens. O meio empregado para assegurar essa comunicação é<br />
fornecido, nas religiões que estudamos aqui, pelos princípios<br />
da simpatia mágica e religiosa. Algumas vezes há representação<br />
direta, natural: um pai é representado pelo filho que ele sacri<br />
fica etc.178Em geral, cabendo sempre ao sacrificante ter feito<br />
os encargos pessoalmente, há por isso mesmo uma representa<br />
ção mais ou menos completa. 179Mas noutros casos a associação<br />
da vítima e do sacrificante realiza-se por um contato material<br />
entre o sacrificante (às vezes o sacerdote) e a vítima. No ritual<br />
semÍtico esse contato é obtido pela imposição das mãos, e em<br />
outros por ritos equivalentes.18oEm conseqüência dessa apro<br />
ximação, a vítima, que já representava os deuses, passa a repre<br />
sentar também o sacrificante. Mas ainda é pouco dizer que ela<br />
o representa: ela se confunde com ele; as duas personalidades<br />
se fundem. A partir de agora a identificação é tal que, pelo<br />
menos no sacrifício hindu, o destino da vítima, sua morte pró<br />
xima, tem como que um efeito de retorno <strong>sobre</strong> o sacrificante.<br />
Disso resulta para este uma situação ambígua: ele precisa tocar<br />
o animal para permanecer unido com ele mas tem medo de<br />
tocá-Io, pois assim se expõe a partilhar seu destino. O ritual<br />
resolve a dificuldade com um meio-termo: o sacrificante só<br />
toca a vítima por intermédio de um dos instrumentos do sa<br />
crifício.181É assim que a aproximação do sagrado e do profano,<br />
que vimos se processar progressivamente com os diversos ele<br />
mentos do sacrifício, se completa na vítima.<br />
Eis que chegamos ao ponto culminante da cerimônia. Todos<br />
os elementos do sacrifício estão dados e acabam de ser<br />
postos em contato uma última vez. Mas resta efetuar a opera<br />
ção suprema. 182A vítima já é eminentemente sagrada, mas o<br />
espírito que está nela, o princípio divino que ela agora contém,<br />
ainda está preso em seu corpo e ligado por esse último vÍn<br />
culo ao mundo das coisas profanas. A morte irá desfazer esse<br />
vínculo, tornando a consagração definitiva e irrevogável. É o<br />
momento solene.<br />
É um crime que começa, uma espécie de sacrilégio. Assim,<br />
alguns rituais prescreviam libações e expiações enquanto a<br />
vítima era conduzida ao lugar de sua morte.183 As pessoas se<br />
escusavam do ato que iam cumprir, gemiam pela morte do<br />
animal, 184pranteavam-no como a um parente. Pediam-lhe per<br />
dão antes de abatê-Io; dirigiam-se ao resto da espécie à qual<br />
ele pertencia como a um vasto clã familiar ao qual se suplicava<br />
não vingar o dano que se lhe causaria na pessoa de um de seus<br />
membros.185 Sob a influência das mesmas idéias,186chegava-se<br />
a punir o autor da morte: batiam nele187ou o exilavam. Em<br />
Atenas, o sacerdote do sacrifício das Bouphonia fugia jogando<br />
fora seu machado; todos os que haviam participado do sacrifí<br />
cio eram citados no Pritaneu [palácio dos magistrados] e lançavam<br />
a culpa uns aos outros; por fim condenava-se o cutelo,<br />
que era lançado ao mar. 188Aliás, as purificações a que devia se<br />
submeter o sacrificador após o sacrifício assemelhavam-se à<br />
expiação do criminoso. 189<br />
Uma vez que o animal é colocado na posição prescrita e<br />
orientado no sentido determinado pelos ritos,190todos se calam.<br />
Na Índia, os sacerdotes se viram; o sacrificante e o ofician-<br />
39