Ensaio sobre o Sacrifício - WESLEY CARVALHO
Ensaio sobre o Sacrifício - WESLEY CARVALHO
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fício que espera de seus ritos. Ora, esse caráter de penetração<br />
Íntima e de separação, de imanência e de transcendência, é o<br />
que distingue no mais alto grau as coisas sociais. Elas também<br />
existem ao mesmo tempo, conforme o ponto de vista no<br />
qual nos colocamos, dentro e fora do indivíduo. Compreen<br />
de-se assim qual pode ser a função do sacrifício a despeito<br />
dos símbolos pelos quais o crente o exprime para si mesmo.<br />
Trata-se de uma função social porque o sacrifício se relaciona<br />
a coisas sociais.<br />
Por um lado, a renúncia dos indivíduos ou dos grupos às<br />
suas propriedades alimenta as forças sociais. Por certo, não<br />
que a sociedade tenha necessidade das coisas que são a matéria<br />
do sacrifício: aqui tudo se passa no mundo das idéias, e é de<br />
energias mentais e morais que se trata. Mas o ato de abnegação<br />
implicado em todo sacrifício, ao freqüentem ente lembrar<br />
às consciências particulares a presença das forças coletivas, ali<br />
menta precisamente a existência ideal destas. Essas expiações e<br />
essas purificações gerais, essas comunhões, essas sacralizações<br />
de grupos, essas criações de gênios das cidades conferem ou<br />
renovam periodicamente à coletividade, representada por seus<br />
deuses, esse caráter bom, forte, grave, terrível que é um dos<br />
traços essenciais de toda personalidade social. Por outro lado,<br />
os indivíduos encontram nesse mesmo ato uma vantagem. Eles<br />
conferem a si mesmos e às coisas que mais lhes interessam a<br />
força social inteira. Revestem de uma autoridade social seus<br />
votos, seus juramentos, seus casamentos. Cercam, como se com<br />
um círculo de santidade que os protege, os campos que lavra<br />
ram, as casas que construíram. Ao mesmo tempo, encontram<br />
no sacrifício o meio de restabelecer os equilíbrios perturba-<br />
dos: pela expiação redimem-se da maldição social, conseqüência<br />
da falta, e se reincorporam à comunidade; pela doação de<br />
uma parte das coisas cujo uso a sociedade reservou, adquirem<br />
o direito de usufruí-Ias. A norma social é então mantida sem<br />
perigo para os indivíduos e sem prejuízo para o grupo. Assim a<br />
função social do sacrifício é cumprida, tanto para os indivíduos<br />
quanto para a coletividade. E como a sociedade é feita não apenas<br />
de homens, mas também de coisas e acontecimentos, per<br />
cebe-se como o sacrifício pode acompanhar e reproduzir ao<br />
mesmo tempo o ritmo da vida humana e o da natureza, como<br />
pôde tornar-se periódico em função dos fenômenos naturais,<br />
ocasional como as necessidades momentâneas dos homens,<br />
submetendo-se enfim a inúmeras funções.<br />
De resto, pudemos observar ao longo do estudo a quanti<br />
dade de crenças e práticas sociais não propriamente religiosas<br />
que se acham relacionadas com o sacrifício. Falamos sucessivamente<br />
do contrato, da remissão, da pena, da dádiva, da ab<br />
negação, das idéias relativas à alma e à imortalidade que ainda<br />
são a base da moral comum. O que mostra a importância que<br />
tem para a sociologia a noção do sacrifício. Mas neste trabalho<br />
não nos propusemos segui-Ia em seu desenvolvimento e em<br />
todas as suas ramificações. Nossa tarefa era simplesmente buscar<br />
constituí-Ia.<br />
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