Ensaio sobre o Sacrifício - WESLEY CARVALHO
Ensaio sobre o Sacrifício - WESLEY CARVALHO
Ensaio sobre o Sacrifício - WESLEY CARVALHO
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
80<br />
vadas até essa data.426Em Atenas encerravam-se os restos dos<br />
porcos sacrificados nas Tesmofórias [festas em honra de Ce<br />
res].427Essas relíquias serviam de corpo ao espírito liberado<br />
pelo sacrifício. Elas permitiam pegá-Io e utilizá-Io, mas <strong>sobre</strong><br />
tudo conservá-Io. O retorno periódico do sacrifício, nas épocas<br />
em que a terra se despojava, garantia a continuidade da vida<br />
natural, possibilitando localizar e fixar o caráter sagrado que<br />
se pretendia conservar e que no ano seguinte reaparecia nos<br />
novos produtos do solo para se reencarnar numa nova vítima.<br />
A continuação dos sacrifícios agrários apresenta assim uma<br />
série ininterrupta de concentrações e de difusões. Tão logo a<br />
vítima se torna espírito, gênio, é partilhada e dispersada para<br />
semear a vida. Para que essa vida não se perca (e há sempre o<br />
risco de perdê-Ia um pouco, como o testemunha a história de<br />
Pélope com ombro de marfim) é preciso reuni-Ia periodica<br />
mente. O mito de OsÍris, cujos membros dispersos eram reunidos<br />
por Ísis, é uma imagem desse ritmo e dessa alternância.<br />
Para concluir, o sacrifício continha em si mesmo a condição de<br />
sua periodicidade, prescindindo do retorno regular dos traba<br />
lhos agrícolas. De resto, essa condição é estipulada pela lenda<br />
que relata a instituição desses sacrifícios. A pÍtia prescrevia a<br />
indefinida repetição das Bouphonia e das outras cerimônias da<br />
mesma natureza. A interrupção era inconcebível.<br />
Em suma, assim como o sacrifício pessoal assegura a vida<br />
da pessoa, também o sacrifício objetivo em geral e o sacrifício<br />
agrário em particular asseguram a vida real e sadia das coisas.<br />
Mas o cerimonial dos sacrifícios agrários, dos quais acaba<br />
mos de analisar um tipo, foi geralmente <strong>sobre</strong>carregado de ri<br />
tos acessórios e muito deturpado conforme a interpretação de<br />
algumas de suas práticas. Nele é comum se misturarem ritos<br />
mágicos da chuva e do sol: afoga-se a vítima ou despeja-se água<br />
<strong>sobre</strong> ela; o fogo do sacrifício ou fogos especiais representam o<br />
fogo do sol.428Por outro lado, tendo os ritos de dessacralização<br />
(do objeto, do sacrificante) adquirido um lugar preponderante,<br />
podia suceder que o rito inteiro assumisse o caráter de um<br />
verdadeiro sacrifício expiatório, como mostrou Frazer.429O<br />
espírito do campo que saía da vítima adquiria os atributos de<br />
um bode expiatório.430A festa agrária tornava-se uma festa do<br />
Perdão. Na Grécia, os mitos que contavam a instituição dessas<br />
festas freqüentemente as representavam como a expiação perió<br />
dica de crimes originais. É o caso das Bouphonia.431<br />
Assim, de um único sacrifício agrário podia redundar todo<br />
um conjunto de efeitos. O valor da vítima de um sacrifício<br />
solene e a força expansiva da consagração eram tais que era<br />
impossível limitar arbitrariamente sua eficácia. A vítima era<br />
um centro de atração e de irradiação. As coisas que o sacrifício<br />
podia afetar recebiam sua parte da influência dela. Conforme<br />
o estado e a natureza das necessidades, das pessoas ou dos ob<br />
jetos, os efeitos produzidos podiam ser diferentes.<br />
81