Ensaio sobre o Sacrifício - WESLEY CARVALHO
Ensaio sobre o Sacrifício - WESLEY CARVALHO
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a tradição haviam sido apedrejadas numa sedição.460As deusas<br />
estrangeiras são o estrangeiro, o passante que freqüentemente<br />
desempenha um papel nas festas da colheita; o apedrejamento<br />
é um rito de sacrifício. Muitas vezes, um simples ferimento do<br />
deus equivale à sua morte anual. Belen, adormecida no Blu<br />
menthal ao pé do balão de Guebwiller, foi ferida no pé por um<br />
javali, como Adônis; de cada gota do sangue que escorria de<br />
sua ferida nasceu uma flor.461<br />
A morte do deus é com freqüência um suicídio: Hércules<br />
no Eta, Melkarth em Tiro, 462o deus Sandés ou Sandon em<br />
Tarso,463Dido em Cartago imolaram-se. A morte de Melkarth<br />
era comemorada com uma festa a cada verão; era uma festa da<br />
colheita. A mitologia grega conhece deusas que tinham o tÍtu<br />
lo de ATTuyxoflÉVT], isto é, deusas "enforcadas", como Artêmis,<br />
Hécate e Helena. 464Em Atenas, a deusa enforcada era ErÍgona,<br />
mãe de Estáfilo, herói da uva. Em Delfos ela se chamava Chari<br />
la.465Charila, dizia o conto, era uma menina que durante uma<br />
escassez de alimentos fora pedir ao rei sua parte na última dis<br />
tribuição; maltratada e expulsa por ele, enforcou-se num pequeno<br />
vale afastado. Ora, uma festa anual, diz-se que instituída<br />
por ordem da pÍtia, era celebrada em sua honra. Começava por<br />
uma distribuição do trigo; depois fabricava-se uma imagem de<br />
Charila, que era golpeada, enforcada e enterrada. Em outras<br />
lendas, o deus se inflige uma mutilação que às vezes resulta em<br />
sua morte. É o caso de Átis e de Eshmoun, que, perseguido<br />
por Astronoe, se mutilou com um machado.<br />
Amiúde tratava-se de um fundador do culto ou do pri<br />
meiro sacerdote de um deus, cuja morte era contada pelo<br />
mito. Assim, em Itone, Iodama, <strong>sobre</strong> cujo túmulo ardia um<br />
fogo sagrado, era sacerdotisa de Atena Itônia.466Em Atenas,<br />
Aglaura, cuja morte era supostamente expiada numa festa, as<br />
Pluntérias, era também sacerdotisa de Atena. Na verdade, o<br />
sacerdote e o deus são um único e mesmo ser. Com efeito,<br />
sabemos que o sacerdote pode ser, tanto quanto a vítima, uma<br />
encarnação do deus. Mas existe aí uma primeira diferenciação,<br />
uma espécie de desdobramento mitológico do ser divino e da<br />
vÍtima.467Graças a esse desdobramento o deus parece escapar<br />
à morte.<br />
É a uma diferenciação de outro tipo que se devem os mi<br />
tos cujo episódio central é o combate de um deus com um<br />
monstro ou um outro deus. Tais são, na mitologia babilônia, os<br />
combates de Marduk com Tiamat, isto é, o Caos;468de Perseu<br />
matando a Górgona ou o dragão de Joppe, de Belerofonte lu<br />
tando contr~ a Quimera, de SãoJorge vencedor do Dadjdjal;469<br />
é também o caso dos trabalhos de Hércules e, enfim, de todas<br />
as teomaquias; pois nesses combates o vencido é tão divino<br />
quanto o vencedor.<br />
Esse episódio é uma das formas mitológicas do sacrifício<br />
do deus. Com efeito, esses combates divinos equivalem à<br />
morte de um só deus. Eles se alternam nas mesmas festas:47o<br />
os jogos Ístmicos, celebrados na primavera, comemoram ou<br />
a morte de Melicertes ou a vitória de Teseu <strong>sobre</strong> SÍnis; os<br />
jogos nemeus celebram ou a morte de Arquêmoro ou a vitória<br />
de Hércules <strong>sobre</strong> o Leão de Neméia. Por vezes eles são<br />
acompanhados dos mesmos incidentes: a derrota do monstro<br />
é seguida do casamento do deus - de Perseu com Andrômaca,<br />
de Hércules com HesÍone; a Maibraut das lendas alemãs, per<br />
seguida pelos espíritos da caça selvagem, não é outra senão a<br />
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