Ensaio sobre o Sacrifício - WESLEY CARVALHO
Ensaio sobre o Sacrifício - WESLEY CARVALHO
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depois do sacrifício. Enfim, os dois deuses da luta ou da caça<br />
mÍtica são colaboradores. Mitra e o touro, diz Porfírio, são<br />
igualmente demiurgos.489<br />
Assim, o sacrifício produziu na mitologia uma infinidade<br />
de descendentes. De abstração em abstração ele se tornou um<br />
dos temas fundamentais das lendas divinas. Mas foi precisa<br />
mente a introdução desse episódio da lenda de um deus que<br />
determinou a formação ritual do sacrifício do deus. Sacerdote<br />
ou vítima, sacerdote e vítima, é um deus já formado que ao<br />
mesmo tempo age e padece no sacrifício. Ora, a divindade da<br />
vítima não se limita ao sacrifício mitológico, aparecendo igualmente<br />
no sacrifício real que lhe corresponde. Uma vez cons<br />
tituído, o mito reage <strong>sobre</strong> o rito do qual saiu e nele se realiza.<br />
Assim, o sacrifício do deus não é simplesmente o tema de um<br />
belo conto mitológico. Qualquer que seja a personalidade que<br />
o deus tenha assumido no sincretismo dos paganismos, adultos<br />
ou envelhecidos, é sempre o deus que sofre o sacrifício; não se<br />
trata de um mero figurante.49o Pelo menos na origem, há "pre<br />
sença real", como na missa católica. São Ciril0491 relata que em<br />
alguns combates de gladiadores, rituais e periódicos, um certo<br />
Cronos (nç Kpóvoç), escondido debaixo da terra, recebia<br />
o sangue purificador que corria dos ferimentos. Esse Kpóvoç<br />
nç é o Saturno das saturnais que noutros rituais era morto.492<br />
O nome dado ao representante do deus tendia a identificá-Io<br />
ao deus. É por essa razão que o sumo sacerdote de Átis, que<br />
também desempenhava o papel de vítima, tinha o nome de<br />
seu deus e predecessor mÍtico.493 A religião mexicana oferece<br />
exemplos bem conhecidos da identidade da vítima e do deus.<br />
Na festa de Huitzilopochtli494 em particular, a estátua do deus,<br />
feita de massa de acelga e moldada com sangue humano, era<br />
despedaçada, dividida entre os fiéis e comida. É certo que em<br />
todo sacrifício, como já assinalamos, a vítima tem algo do deus,<br />
mas aqui ela é o próprio deus e é essa identificação que caracteriza<br />
o sacrifício do deus.<br />
Sabemos porém que o sacrifício se repete periodicamen<br />
te porque o ritmo da natureza exige essa periodicidade. Portanto,<br />
o mito só faz o deus vivo sair da prova para submetê-Io<br />
novamente a ela, de modo que constitui sua vida como uma<br />
cadeia ininterrupta de paixões e ressurreições. Astarte ressuscita<br />
Adônis, Ishtar faz o mesmo com Tamuz, Ísis com OsÍris,<br />
Cibele com Átis, Iolau com Hércules.495 DionÍsio assassinado é<br />
concebido uma segunda vez por Semele.496 Eis-nos já distantes<br />
da apoteose de que falamos no começo deste capítulo. O deus<br />
não sai do sacrifício senão para reentrar e vice-versa. Não há<br />
mais interrupção em sua personalidade. Se ele é despedaçado,<br />
como OsÍris e Pélope, seus pedaços são recuperados, juntados<br />
e reanimados. Com isso a finalidade primitiva do sacrifício é<br />
relegada à sombra; não é mais um sacrifício agrário nem um sa<br />
crifício pastoril. O deus que ali comparece como vítima existe<br />
em si, tem qualidades e poderes múltiplos. Assim, o sacrifício<br />
aparece como uma repetição e uma comemoração do sacrifí<br />
cio original do deus.497 À lenda que o relata geralmente acres<br />
centa-se alguma circunstância que assegura sua perpetuidade.<br />
Desse modo, quando um deus morre de uma morte mais ou<br />
menos natural um oráculo prescreve um sacrifício expiatório<br />
que reproduz a morte desse deus, como vimos anteriormente.<br />
Quando um deus é vencedor de um outro, perpetua a lem<br />
brança de sua vitória pela instituição de um culto.498<br />
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