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Ensaio sobre o Sacrifício - WESLEY CARVALHO

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Assim se explica um caráter muito particular do sacrifício<br />

religioso. Em todo sacrifício há um ato de abnegação, já que<br />

o sacrificante se priva e dá. E geralmente essa abnegação lhe é<br />

mesmo imposta como um dever, pois o sacrifício nem sempre<br />

é facultativo; os deuses o exigem. Deve-se a eles o culto, o ser­<br />

viço, como diz o ritual hebreu; deve-se a eles sua parte, como<br />

dizem os hindus. Mas essa abnegação e essa submissão não su­<br />

primem um retorno egoísta. Se o sacrificante dá algo de si, ele<br />

não se dá: reserva-se prudentemente. Se ele dá, é em parte<br />

para receber. O sacrifício se apresenta assim sob um duplo<br />

aspecto. É um ato útil e é uma obrigação. O desprendimento<br />

mistura-se ao interesse. Eis por que ele foi freqüentemente<br />

concebido sob a forma de um contrato. No fundo, talvez não<br />

haja sacrifício que não tenha algo de contratual. As duas partes<br />

envolvidas trocam seus serviços e cada uma tem sua vantagem.<br />

Pois os deuses, eles também, têm necessidade dos profanos:<br />

se nada fosse reservado da colheita, o deus do trigo morreria;<br />

para que DionÍsio possa renascer, é preciso que o bode de Dio­<br />

nÍsio seja sacrificado nas vindimas; é o soma que os homens dão<br />

de beber aos deuses que faz a força destes contra os demônios.<br />

Para que o sagrado subsista, é preciso dar-lhe sua parte, e é<br />

com a parte dos profanos que se faz essa reserva. Essa ambi­<br />

güidade é inerente à natureza do sacrifício. Com efeito, ela se<br />

deve à presença do intermediário, e sabemos que sem intermediário<br />

não há sacrifício. Por ser distinta do sacrificante e do<br />

deus, a vítima os separa ao mesmo tempo que os une; eles se<br />

aproximam sem se entregar inteiramente um ao outro.<br />

Há no entanto um caso em que está ausente todo cálcu­<br />

lo egoísta. Trata-se do sacrifício do deus, pois o deus que se<br />

t<br />

f<br />

sacrifica dá sem retorno. É que dessa vez todo intermediário<br />

desapareceu. O deus, que é ao mesmo tempo o sacrificante,<br />

coincide com a vítima e mesmo, às vezes, com o sacrificador.<br />

Aqui, todos os diversos elementos que entram nos sacrifícios<br />

ordinários penetram-se uns nos outros e se confundem. Só<br />

que essa confusão só é possível para seres mÍticos, isto é, ideais.<br />

Eis como a concepção de um deus que se sacrifica pelo mun­<br />

do pôde se produzir e se tornou, mesmo para os povos mais<br />

civilizados, a expressão mais alta e como que o limite ideal da<br />

abnegação irrestrita.<br />

Contudo, do mesmo modo que o sacrifício do deus per­<br />

tence à esfera imaginária da religião, também se poderia pen­<br />

sar que o sistema inteiro é apenas um jogo de imagens. Os<br />

poderes aos quais se dirige o fiel que sacrifica seus bens mais<br />

preciosos parecem nada ter de positivo. Quem não acredita,<br />

vê nesses ritos nada mais que vãs e custosas ilusões e se espan­<br />

ta de que a humanidade tenha se obstinado em dissipar suas<br />

forças em favor de deuses fantasmagóricos. Mas talvez haja aí<br />

realidades verídicas às quais se pode associar a instituição em<br />

sua integralidade. As noções religiosas, por serem objeto de<br />

crença, existem; existem objetivamente, como fatos sociais.<br />

As coisas sagradas em relação às quais funciona o sacrifício são<br />

coisas sociais. E isso basta para explicar o sacrifício. Para que o<br />

sacrifício seja bem-fundamentado, duas condições são necessá­<br />

rias. Primeiro é preciso que haja fora do sacrificante coisas que<br />

o façam sair de si mesmo e às quais ele deve o que sacrifica. É<br />

preciso, a seguir, que essas coisas estejam perto dele para que<br />

ele possa entrar em relação com elas, nelas encontrar a força<br />

e a segurança de que necessita e retirar de seu contato o bene-<br />

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