Ensaio sobre o Sacrifício - WESLEY CARVALHO
Ensaio sobre o Sacrifício - WESLEY CARVALHO
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ela lhes era até atribuída por inteiro. Era um modo de fazer<br />
o lavrador participar dos benefícios da consagração e talvez<br />
mesmo de confiar à sua guarda as forças que ele assimilava,<br />
que noutros casos eram fixadas no campo. Mais tarde, aliás,<br />
por ocasião da semeadura ou do preparo da terra, os restos<br />
da refeição eram semeados.419 Ou, ainda, partilhava-se uma<br />
nova vítima, nova encarnação do gênio agrário, e espalhava-se<br />
na terra a vida que lhe fora anteriormente retirada. O que se<br />
devolvia à terra era o que se lhe havia tomado emprestado.420<br />
Em alguns casos, essa correspondência fundamental entre os<br />
ritos da profanação das primÍcias e os da fertilização dos campos,<br />
entre as duas vítimas, deu ensejo a uma verdadeira fusão<br />
das duas cerimônias, praticadas então numa mesma vítima. Foi<br />
o que aconteceu com as Bouphonia, que são um sacrifício de<br />
dupla face: são um sacrifício da debulha, pois começavam por<br />
uma oferenda das primÍcias, mas têm igualmente por finali<br />
dade a fertilização da terra. Com efeito, vimos que de acordo<br />
com a lenda a festa foi estabelecida para pôr fim a uma escassez<br />
e a uma seca. Poder-se-ia mesmo dizer que a comunhão feita<br />
com a carne do boi possui, ela também, essa dupla finalidade:<br />
permitir o consumo dos novos cereais e dar aos cidadãos uma<br />
bênção especial para seus futuros trabalhos agrários.<br />
Mas prossigamos a análise de nossos dados. Chegamos ao<br />
terceiro momento de nosso rito. Ao matar o boi, Sopatros havia<br />
matado o espírito do trigo e o trigo não havia brotado. Segundo<br />
os termos do oráculo, o segundo sacrifício deve ressuscitar<br />
o morto. É por isso que se empalha o boi: o boi empalhad0421<br />
é o boi ressuscitado. Ele é atrelado ao arado; o simulacro de<br />
lavragem que se lhe faz efetuar nos campos corresponde, en-<br />
tre os Khonds, à dispersão da vítima. Mas convém notar que<br />
a existência individual do boi, de seu espírito, <strong>sobre</strong>vive tanto<br />
ao consumo quanto à difusão da santidade de suas carnes. Esse<br />
espírito, o mesmo que se retirou da colheita ceifada, acha-se<br />
de novo aí, dentro da pele costurada e cheia de palha. Esse<br />
traço não é particular às Bouphonia. Numa das festas mexicanas,<br />
para representar o nascimento do gênio agrário despojava-se<br />
a vítima morta e com sua pele revestia-se aquela que devia su<br />
cedê-Ia no ano seguinte.422 Em Lausitz [Alemanha central], na<br />
festa da primavera enterra-se "o morto", isto é, o velho deus<br />
da vegetação, retira-se a camisa do boneco que o representa e<br />
ela é levada imediatamente à árvore de maio;423com a roupa<br />
transporta-se o espírito. É portanto a própria vítima que re<br />
nasce. Ora, essa vítima é a alma da vegetação que, primeiro<br />
concentrada nas primÍcias, foi transportada para o animal e<br />
que a imolação, além disso, depurou e rejuvenesceu. Trata-se<br />
assim do princípio mesmo da germinação e da fertilidade: é a<br />
vida dos campos que assim renasce e ressuscita.424<br />
O que mais impressiona nesse sacrifício é a continuidade<br />
ininterrupta dessa vida cuja duração e transmissão ele asse<br />
gura. Uma vez separado o espírito pela morte sacrificial, ele<br />
permanece fixado ali onde o rito lhe dirige. Nas Bouphonia ele<br />
reside no boneco do boi empalhado. Quando a ressurreição<br />
não era figurada por uma cerimônia especial, a conservação de<br />
uma parte da vítima ou da oblação atestava a persistência e a<br />
presença da alma que nela residia. Em Roma não se conservava<br />
apenas a cabeça do cavalo de outubro, mas também seu sangue<br />
até as Palílias [festas em honra de Pales, deus dos pastores].425<br />
As cinzas do sacrifício das Forcidiae eram igualmente conser-<br />
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