F&N202
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FIGURA DO MÊS<br />
Paulo Flores é uma das<br />
referências da música<br />
angolana, principalmente<br />
na vertente do<br />
semba. Como define<br />
este estilo musical?<br />
Há várias maneiras de definir o<br />
semba. É uma música que permitiu<br />
aos angolanos começarem a celebrar<br />
a sua dor. Tem um ritmo forte, toca<br />
em todas as festas, mesmo no tempo<br />
colonial. Comecei a descobrir isso<br />
com as minhas avós, porque as ouvia<br />
cantar em casa, com uma alegria<br />
muito grande, um ritmo contagiante.<br />
Quando perguntava o que significava<br />
a música, normalmente estavam a falar<br />
de uma história de dor. Aquilo, inclusivamente,<br />
funcionou também na<br />
minha escrita, um pouco a preocupação<br />
com os outros e também o direito<br />
de celebrar e ser feliz. Ritmicamente,<br />
é um “quatro por quatro” que serve<br />
um pouco de matriz a muitos ritmos,<br />
como a capoeira e a própria kizomba.<br />
Embora seja uma derivação do<br />
zouk, é tocada com alguns elementos<br />
que o semba também possui. Tem a<br />
característica de ser uma identidade<br />
que nos define enquanto angolanos.<br />
Para Paulo Flores,<br />
Como avalia a sua carreira nesta<br />
fase. Cumpriu-se um ciclo?<br />
Ainda há muito para se fazer.<br />
Muito por aprender e muito por educar.<br />
Há muito para mostrar à juventude:<br />
que vale a pena lutar pelo bem-<br />
-estar. O que fiz, como músico, não<br />
tem valor se os outros não o fizerem.<br />
Somos um todo.<br />
Acredita no papel social, quase<br />
interventivo, da música e dos músicos?<br />
Sim, porque também foi assim<br />
que cresci. Mesmo as minhas influências<br />
da música portuguesa vieram<br />
do papel interventivo dos poetas<br />
Ary dos Santos, Carlos do Carmo<br />
e em cantores como Amália e Zeca<br />
Afonso e, em Angola, das músicas em<br />
kimbundu, antes da independência,<br />
depois o próprio Rui Mingas, o André<br />
Mingas…<br />
Enquanto artista, que, às vezes,<br />
é um bocado indissociável de mim<br />
enquanto indivíduo, a minha música<br />
acaba, muitas vezes, por funcionar,<br />
como um bálsamo, uma forma<br />
de procurar desconstruir as minhas<br />
inseguranças, expô-las e, ao partilhá-<br />
-las, perceber que as minhas inseguranças<br />
também eram as dos outros.<br />
Hoje em dia, às vezes, a questão<br />
principal é aguentar a dor que sinto,<br />
por achar que não estou a conseguir<br />
ajudar toda a gente como gostava e,<br />
ao mesmo tempo, o pragmatismo de<br />
sermos profissionais e de precisarmos<br />
do aplauso e não do cachê. Mas<br />
vejo a arte como uma forma de estar<br />
próximo dos outros e de nos ajudar a<br />
ser mais inteiros. Em relação a Angola,<br />
em particular, também serve para<br />
resgatar memórias que permitam à<br />
juventude continuar a criar e a olhar<br />
para a frente com outra substância.<br />
“<br />
A minha música, no<br />
início, era quase como uma<br />
criação que saía antes do<br />
pensamento, que vinha cá<br />
para fora por inspiração,<br />
por ingenuidade. Hoje em<br />
dia, já existe maior consciência<br />
da minha parte e,<br />
por isso, às vezes, custa-me<br />
mais acabar as músicas,<br />
porque já não é só música<br />
para mim (...)<br />
“<br />
- Como olha para a Angola de<br />
hoje e para o momento da sua música?<br />
– O país está favorável, mas falta<br />
um longo caminho a percorrer. É normal.<br />
Não foi fácil durante a guerra e<br />
também não é fácil o período de recuperação.<br />
Acredito que vamos chegar lá<br />
um dia. Acredito na capacidade de as<br />
pessoas darem a volta por cima. Com<br />
um investimento forte nas áreas sociais,<br />
principalmente nas vertentes da<br />
saúde e da educação, vamos conseguir<br />
mudar o país completamente. Politicamente,<br />
já houve uma grande mudança<br />
e temos que enaltecer este facto.<br />
Como cidadão e angolano, continuo<br />
a fazer a minha parte, portanto,<br />
é chegado o momento de todos os<br />
angolanos unirem-se e lutarem por<br />
um mesmo objectivo. Estamos num<br />
momento de esperança. Nota-se que<br />
existe maior preocupação da classe<br />
política pelos seus concidadãos. Isso<br />
dá-nos logo, à partida, uma lufada de<br />
ar fresco, sentes que há um respirar<br />
mais leve. Parece que está a sair um<br />
peso grande de cima de nós. É essa<br />
capacidade de nos reinventarmos que<br />
dá esperança. As pessoas continuam a<br />
acreditar que é possível fazer um país<br />
melhor, também, e, principalmente,<br />
através da arte.<br />
A minha música, no início, era quase<br />
como uma criação que saía antes do<br />
pensamento, que vinha cá para fora<br />
por inspiração, por ingenuidade. Hoje<br />
em dia, já existe maior consciência da<br />
minha parte e, por isso, às vezes, custa-me<br />
mais acabar as músicas, porque<br />
já não é só música para mim. Não no<br />
sentido literal político, mas no sentido<br />
de fazer as pessoas sentirem que estamos<br />
próximos e que os artistas representam<br />
as carências e as expectativas<br />
dos angolanos, em particular.<br />
De onde vem a música na sua<br />
vida?<br />
Essencialmente, é de família. A<br />
minha avó Janete tocava piano, o meu<br />
avô, guitarra, e o meu pai era Dj. Sempre<br />
estive a cantar. A minha música,<br />
de facto, tem muito a ver com a forma<br />
como me preocupo com o mundo que<br />
nos rodeia.<br />
É uma música que acontece por<br />
causa dos outros. No início, era quase<br />
um desabafo que, de repente, se tornou<br />
num bem maior do que imaginava.<br />
Mais de 30 anos de carreira, com<br />
um vasto repertório onde se podem<br />
destacar temas como “Makalakato”,<br />
que tem um cariz interventivo. O<br />
que procurou transmitir com esta<br />
música?<br />
A música é uma forma de manter<br />
a sociedade unida, principalmente<br />
a juventude. Tem a capacidade<br />
de ajudar e de transmitir os<br />
Figuras&Negócios - Nº 202 - JUlHO 2019 25