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FIGURA DO MÊS<br />

Paulo Flores é uma das<br />

referências da música<br />

angolana, principalmente<br />

na vertente do<br />

semba. Como define<br />

este estilo musical?<br />

Há várias maneiras de definir o<br />

semba. É uma música que permitiu<br />

aos angolanos começarem a celebrar<br />

a sua dor. Tem um ritmo forte, toca<br />

em todas as festas, mesmo no tempo<br />

colonial. Comecei a descobrir isso<br />

com as minhas avós, porque as ouvia<br />

cantar em casa, com uma alegria<br />

muito grande, um ritmo contagiante.<br />

Quando perguntava o que significava<br />

a música, normalmente estavam a falar<br />

de uma história de dor. Aquilo, inclusivamente,<br />

funcionou também na<br />

minha escrita, um pouco a preocupação<br />

com os outros e também o direito<br />

de celebrar e ser feliz. Ritmicamente,<br />

é um “quatro por quatro” que serve<br />

um pouco de matriz a muitos ritmos,<br />

como a capoeira e a própria kizomba.<br />

Embora seja uma derivação do<br />

zouk, é tocada com alguns elementos<br />

que o semba também possui. Tem a<br />

característica de ser uma identidade<br />

que nos define enquanto angolanos.<br />

Para Paulo Flores,<br />

Como avalia a sua carreira nesta<br />

fase. Cumpriu-se um ciclo?<br />

Ainda há muito para se fazer.<br />

Muito por aprender e muito por educar.<br />

Há muito para mostrar à juventude:<br />

que vale a pena lutar pelo bem-<br />

-estar. O que fiz, como músico, não<br />

tem valor se os outros não o fizerem.<br />

Somos um todo.<br />

Acredita no papel social, quase<br />

interventivo, da música e dos músicos?<br />

Sim, porque também foi assim<br />

que cresci. Mesmo as minhas influências<br />

da música portuguesa vieram<br />

do papel interventivo dos poetas<br />

Ary dos Santos, Carlos do Carmo<br />

e em cantores como Amália e Zeca<br />

Afonso e, em Angola, das músicas em<br />

kimbundu, antes da independência,<br />

depois o próprio Rui Mingas, o André<br />

Mingas…<br />

Enquanto artista, que, às vezes,<br />

é um bocado indissociável de mim<br />

enquanto indivíduo, a minha música<br />

acaba, muitas vezes, por funcionar,<br />

como um bálsamo, uma forma<br />

de procurar desconstruir as minhas<br />

inseguranças, expô-las e, ao partilhá-<br />

-las, perceber que as minhas inseguranças<br />

também eram as dos outros.<br />

Hoje em dia, às vezes, a questão<br />

principal é aguentar a dor que sinto,<br />

por achar que não estou a conseguir<br />

ajudar toda a gente como gostava e,<br />

ao mesmo tempo, o pragmatismo de<br />

sermos profissionais e de precisarmos<br />

do aplauso e não do cachê. Mas<br />

vejo a arte como uma forma de estar<br />

próximo dos outros e de nos ajudar a<br />

ser mais inteiros. Em relação a Angola,<br />

em particular, também serve para<br />

resgatar memórias que permitam à<br />

juventude continuar a criar e a olhar<br />

para a frente com outra substância.<br />

“<br />

A minha música, no<br />

início, era quase como uma<br />

criação que saía antes do<br />

pensamento, que vinha cá<br />

para fora por inspiração,<br />

por ingenuidade. Hoje em<br />

dia, já existe maior consciência<br />

da minha parte e,<br />

por isso, às vezes, custa-me<br />

mais acabar as músicas,<br />

porque já não é só música<br />

para mim (...)<br />

“<br />

- Como olha para a Angola de<br />

hoje e para o momento da sua música?<br />

– O país está favorável, mas falta<br />

um longo caminho a percorrer. É normal.<br />

Não foi fácil durante a guerra e<br />

também não é fácil o período de recuperação.<br />

Acredito que vamos chegar lá<br />

um dia. Acredito na capacidade de as<br />

pessoas darem a volta por cima. Com<br />

um investimento forte nas áreas sociais,<br />

principalmente nas vertentes da<br />

saúde e da educação, vamos conseguir<br />

mudar o país completamente. Politicamente,<br />

já houve uma grande mudança<br />

e temos que enaltecer este facto.<br />

Como cidadão e angolano, continuo<br />

a fazer a minha parte, portanto,<br />

é chegado o momento de todos os<br />

angolanos unirem-se e lutarem por<br />

um mesmo objectivo. Estamos num<br />

momento de esperança. Nota-se que<br />

existe maior preocupação da classe<br />

política pelos seus concidadãos. Isso<br />

dá-nos logo, à partida, uma lufada de<br />

ar fresco, sentes que há um respirar<br />

mais leve. Parece que está a sair um<br />

peso grande de cima de nós. É essa<br />

capacidade de nos reinventarmos que<br />

dá esperança. As pessoas continuam a<br />

acreditar que é possível fazer um país<br />

melhor, também, e, principalmente,<br />

através da arte.<br />

A minha música, no início, era quase<br />

como uma criação que saía antes do<br />

pensamento, que vinha cá para fora<br />

por inspiração, por ingenuidade. Hoje<br />

em dia, já existe maior consciência da<br />

minha parte e, por isso, às vezes, custa-me<br />

mais acabar as músicas, porque<br />

já não é só música para mim. Não no<br />

sentido literal político, mas no sentido<br />

de fazer as pessoas sentirem que estamos<br />

próximos e que os artistas representam<br />

as carências e as expectativas<br />

dos angolanos, em particular.<br />

De onde vem a música na sua<br />

vida?<br />

Essencialmente, é de família. A<br />

minha avó Janete tocava piano, o meu<br />

avô, guitarra, e o meu pai era Dj. Sempre<br />

estive a cantar. A minha música,<br />

de facto, tem muito a ver com a forma<br />

como me preocupo com o mundo que<br />

nos rodeia.<br />

É uma música que acontece por<br />

causa dos outros. No início, era quase<br />

um desabafo que, de repente, se tornou<br />

num bem maior do que imaginava.<br />

Mais de 30 anos de carreira, com<br />

um vasto repertório onde se podem<br />

destacar temas como “Makalakato”,<br />

que tem um cariz interventivo. O<br />

que procurou transmitir com esta<br />

música?<br />

A música é uma forma de manter<br />

a sociedade unida, principalmente<br />

a juventude. Tem a capacidade<br />

de ajudar e de transmitir os<br />

Figuras&Negócios - Nº 202 - JUlHO 2019 25

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