que sabem o que dizem e o que fazem, com certa confiança de que ele nãoabusava diante de gente. Isto é verdade.E assim viveu um ano, sem pisar um calo à moralidade pública, matronarespeitável, que respeita muito pouca gente, e nunca teve pecha que pôr nocarácter imaculado do seu benjamim.E assim correu vagaroso um ano. Guilherme aborreceu-se, e planizou umaviagem. Aborreceu-se, porque as fezes do prazer são a saciedade, e overdadeiro prazer não o conhecera ele. O gozo era-lhe fácil; mas o gozo deum dia é a véspera do enojo; é a gulodice do mel, que vem do estômagoencruado ao paladar em hálito azedo. Não encontrou, entre tantas, umaamiga; e quem não conheceu a mulher amiga, põe a mão sobre o coração, enão encontra aí a flor, que se rega nas lágrimas, quer de alegria, quer derecíproca tristeza.Amar é um sentimento profanado por aquela palavra vulgaríssima. Amaralnão amara ninguém. Valido da impostura hábil, venceu resistências froixas; asvencidas, porém, caíam como as ninfas de Camões, na ilha dos Amores:“Deixavam-se ir dos galgos apanhando.”Se, abandonadas, faziam trejeitos de damas doloridas, isso era o ciúme, opudor retardado, o fastio, que se demorava nelas mais do que nele, ou hábitode ninguém se conformar com a sorte decretada em cima. Nunca ele viu oque são lágrimas de mulher abandonada, quando mais de rastos se humilhaaos caprichos do homem, que faz o salto da fuga com o pé sobre o coração daque fica para calar a vergonha, e morrer nessa luta desigual. O que ele viu foiaquilo por onde devia terminar a sua carreira de homem apostado a tirar,segundo as circunstâncias, urna vantagem real dos desejos nobres, outra daimpostura, e a derradeira do cinismo. Começara a colher flores nas lagoaspontinas: saiu inficionado.O sangue, que lhe vinha do coração nobre aos pulmões viciados de podridão,corrompera-se. O coração deu-lhe um abalo, quando se viu pobre dassensações íntimas que vão entalhar uma ação nobre, uma imagem santa, umadata gloriosa na consciência. Entristeceu-se. O que dantes era artifício, dava-oa natureza demudada agora.Foi por isso que Amaral resolveu uma viagem de alguns anos.
CAPÍTULO VEra uma noite, vinte e oito de Junho de 1845, véspera do milagroso apóstoloS. Pedro.Sabeis como, nesta religiosíssima cidade do Porto, se festejam todos os santosda corte celestial, e particularmente Santo António, S. João e S. Pedro. Este,mais prestante que todos, pela importante missão de claviculário da bemaventurança,gloria-se de ser festejado anualmente na cidade da Virgem comuma porção fabulosa de estoiros, um inferno indescritível de fogueiras, e oconsumo sobrenatural de pipas de vinho, fritadas de linguiça, postas depescada, e bebedeiras sem cifra conhecida no Bezout.S. Pedro de Miragaia é, incontestavelmente, de todos os Pedros santos o maisquerido. Aquele espaçoso areal não basta para os jorros de povo, que afluemdas ruas sobranceiras. Surgem, como por magia, as fileiras de lâmpadasvariegadas; os mastros de palha e alcatrão, que fedem e abrasam; as orquestrasmilitares, que consomem metade do tempo vozeando nas trompasestridulosas, e outra metade nas libações homéricas, fornecidas pelaliberalidade dos mordomos; as tendas gratas à gastronomia suja dafarrapagem, que as atulha, dando vivas ao santo, e praguejando obscenidades einsolências contra a taverneira tardia no ministrar da meia canada por cabeça;finalmente, o areal de Miragala é um misto de todas as regalias queentusiasmam o populacho, azando-lhe ocasião para que naquelas carassobressaiam todas as linhas grotescas de uma alegria estúpida.No longo quarteirão de casas, que se estende ao longo do arraial, vereis nessanoite caras suportáveis, que o reflexo meio fantástico da iluminação vosafigura belas. Vereis outras, realmente belas, colocando-se de modo que aprojeção tíbia da luz as favoreça, na exposição noturna, aclarando-as aos olhosdo paciente amador, que passeia em baixo sorvendo pelos pés a humidade daareia.Entre estes, mencionada noite, podíeis ter visto Guilherme do Amaral, só,com os olhos mergulhados além nas trevas do rio Douro, absorto, recolhidonesses esconderijo de tristeza, que o homem de algum senso íntimo levaconsigo a toda a parte. Como ele, ajuizado desprezador desses júbilos boçais,viera ter a Miragaia, não o saberia dizer. Achava-se aí, sem saber ao que viera,
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Não sabemos de boa fonte os sonhos
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