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FIGURA 2: Busto Fonseca, século II d.C.,<br />

mármore, Roma, Museus Capitolinos.<br />

A posição cristã não corresponde aqui à oposição<br />

grega do cosmos ao caos, da ordem à desordem,<br />

mas denuncia uma podridão intramundana, pela<br />

qual o paramento não faz mais mundo, mas se torna,<br />

literalmente, imundície. A eficácia dialética dessa<br />

crítica do paramento consiste assim em não mais<br />

opor exteriormente o ordenamento cósmico e seu<br />

deslocamento, mas em postular que o mundo é vencido,<br />

a partir do interior, por um trabalho do negativo<br />

que o torna imundo: “a cosmética é uma cosmologia<br />

decaída”. 4 O raciocínio funciona, na verdade,<br />

sobre uma inversão tipicamente cristã; por exemplo,<br />

quando o mesmo Tertuliano, um pouco mais adiante<br />

em seu tratado, condena o paramento em nome<br />

de um paramento mais autêntico:<br />

Grande blasfêmia quando se diz de alguém: “Desde o momento em que ela se tornou cristã, sua aparência<br />

é mais pobre”! Temerás parecer mais pobre (pauperior) quando te tornaste mais rica (locupletior), ou mais<br />

desleixada (sordidior) quando estás mais paramentada (mundior)? A aparência dos cristãos deve reger-se<br />

pelo bom prazer dos pagãos ou pelo de Deus? 5<br />

Deve-se compreender que, se o paramento das mulheres remete a uma conspurcação, é porque o<br />

verdadeiro paramento se liga ao despojamento: fazer da nudez sua mais pura vestimenta, a exemplo da<br />

nudez adâmica e crística: “seguir nu o Cristo nu (nudus nudum Christum sequi)”. 6<br />

A ordem do ornamento corporal<br />

Sempre que se trata da mundanidade do ornamento corporal, o assunto passa fundamentalmente por<br />

uma questão de ordem. Do cósmico à cosmética, é uma mesma ordem que se estende a todas as escalas,<br />

das esferas celestes até as menores pérolas de um colar, das trajetórias astrais até a regularidade das estrias<br />

deixadas pela passagem do pente nos cabelos. Temos aí, decerto, aquilo que, dos gregos até nós,<br />

trabalha em profundidade toda ideia de cosmética. É que todas as teorias do ornamento corporal, ou<br />

4<br />

P-A Micaud. “Fashion victims. Mode et martyre selon Tertulien (vers 160-après 220)”. Em: Le Peuple des images.<br />

Essai d’anthropologie figurative. Paris: Desclée de Brouwer, 2002. p. 223.<br />

5<br />

Tertuliano, La Toilette des femmes, p. 156-157 [II, 12, 3].<br />

6<br />

Sobre a nudez e a vestimenta cristãs, ver sobretudo G. Bartholeyens. “L’homme au risque du vêtement. Un indice<br />

d’humanité dans la culture occidentale”. Em: Adam et l’astragale. Essais d’anthropologie et d’histoire sur les limites de<br />

l’humain (editado por G. Bartholeyens, P. O. Dittmar, T. Golsenne, M. Har-Peled, V. Jolivet). Paris: Ed. de la MSH,<br />

2009. p. 105-113.

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