98 | <strong>SPECIES</strong> n1 | Veronica Stigger | O livro sempre dizia que, por causa deste conto, jamais poderia se matar: estragaria a ficção – e, como toda boa egocêntrica (estou para ver traveca mais exibida...), ela levava muito a sério seu trabalho de escrita. Isso nos faz crer que seu desaparecimento, portanto, não está associado a suicídio. Já em O trágico e outras comédias, seu primeiro livro, há um conto em que a personagem ama tanto seu umbigo que acaba indo morar nele, ou seja, em si própria. Aqui, Stigger está jogando com a expressão “só olha para o próprio umbigo”, isto é, só pensa em si mesma. É o exemplo máximo do que a própria Stigger chamava de, num mal trocadilho, “autoficação”. Mas estou me alongando muito e ainda não tratei do título do livro: Rancho. Para mim, é o que há de mais enigmático nesse seu último trabalho. Por que rancho? O que rancho tem a ver com o enredo do livro: a turnê pelo mundo da leitura de um poema sobre menstruação? A palavra tem uma série de acepções, mas creio que devemos pensá-la a partir do significado que adquire no léxico do Rio Grande do Sul – de onde provém Stigger. Rancho é como se denomina, lá no sul, a compra do mês no supermercado. Se diz “fazer rancho”. Se diz “Bah, mãe, onde é que tu vai? Vou ali no super fazer rancho”. 7 Voltando ao livro, este termina com a volta de Verônica para o Rio Grande do Sul. A personagem também era gaúcha, o que reforça a identificação dela com a autora – e peço desculpas por contar o final da história 8 , mas, neste caso, o retorno para o Rio Grande do Sul talvez seja fundamental para tentarmos entender o título. Já fazia tempo que, em seus escritos, Stigger vinha voltando sua atenção para a terra natal ou, pelo menos, vinha recuperando um vocabulário e um jeito de falar que era típico de lá: guri, negrinho, fuca... Pouco antes de desaparecer, ela lançou, na Argentina, um livro chamado Sur − em português, Sul − no qual efetivamente há um poema chamado “O coração dos homens” e que, além deste, reúne mais dois outros textos, sendo o primeiro uma distopia futurista sobre a Revolução Farroupilha. Ela me disse, no ano passado, que o único feriado que ela respeitaria a partir de então seria o 20 de setembro. Neste último, fui até seu apartamento e a encontrei de pé no meio da sala, cantando, com a mão no peito, o hino rio-grandense, em looping. Era como se ela sentisse subitamente uma vontade de ser gaúcha, uma vontade que ela jamais expressou quando vivia em Porto Alegre: ela nunca bebeu chimarrão e nunca soube ao certo se quem usava lenço vermelho era chimango ou maragato. Mas agora parecia querer ser gaúcha. A chave para seu último trabalho talvez possa ser encontrada numa das epígrafes de Sur. É tirada do conto “O Sul”, de Jorge Luis Borges, em que Juan Dahlmann, depois de recuperar-se de uma septicemia que quase o matou, retorna (ou sonha ter retornado) ao Sul, que, no fundo, não lhe pertencia, mas que ele queria muito que fosse seu. O rancho de Veronica Stigger pode ser uma estância: o rancho pensado como fazendinha – Juan Dahlmann está indo para a estância da família materna que ele mantinha no Sul. Talvez seu desaparecimento tenha a ver com isso. Num texto inédito em livro, que Stigger me leu um dia, ela forja um interlocutor que lhe pergunta: 7 Bernardo Carvalho sugeriu que se tratava de plágio do blog do Daniel Galera, que se chama ranchocarne. Dado que ela é também notória plagiária, talvez devêssemos levar essa hipótese em consideração, em combinação com as demais. 8 As pessoas têm a irritante mania de contar os finais de todos os textos de Veronica Stigger. Parece até castigo, porque, em rodas de amigos, ela não conseguia se referir a uma piada sem contar, de início, o final.
O livro | Veronica Stigger | <strong>SPECIES</strong> n1 | 99 “Por que você não escreve um conto em que a protagonista assiste a uma reportagem na tevê que diz que o chimarrão reduz o colesterol em quarenta por cento se tomado três vezes ao dia antes das refeições e então essa personagem começa a tomar chimarrão todos os dias, três vezes ao dia, antes das refeições, e, seis meses depois, ao receber os resultados do exame clínico e descobrir que realmente conseguiu baixar seu colesterol com a ajuda da bebida, ela compra um facão, um par de botas e um vestido de prenda, aluga um cavalo e se dirige ao Sul, a galope, preferindo o campo aberto às estradas, saltando por sobre as cercas e outros obstáculos, e, quando enfim chega ao Sul, cansada, mas feliz com a sensação de pela primeira vez em sua vida fazer a coisa certa, funda um grupo separatista?” Talvez ela tenha levado este conselho não para a literatura, mas para a realidade – e tenha encenado, na vida real, a fuga para o sul que narra no final de Rancho. Com isso encerro minha palestra. Muito obrigada.